Atualizado: 5 de fev. de 2023
A partir do relato sobre a costa entre Pernambuco e o rio Camocim, proferido por seis indígenas Potiguara ao holandês Kilian de Resenlaer, traçamos o que talvez seja o primeiro mapa de autoria indígena do que viria a ser Brasil
Mal acabava o inverno na fria e úmida cidade de Amsterdam naquele dia 20 de março de 1628 e seis brasilianos, indígenas tupis, encontraram-se com o senhor Kilian de Resenlaer para lhe dar uma declaração sobre a costa nordeste do Brasil. Caspar Paraoupaba, Andreus Francisco, Pieter Poty, Antony Guirawassauay, Antony Francisco e Lauys Caspar, ficaram frente à frente com o notário holandês que registrou atentamente todas as informações que eles diziam a respeito da costa do Brasil entre Pernambuco e o rio Camocim.
O aprendizado linguístico e cultural mútuo tinha um objetivo claro, prover a Companhia de informações exatas e qualificadas sobre a costa do Brasil: seus portos, as riquezas do interior, os estabelecimentos coloniais portugueses e suas defesas e o ânimo dos indígenas com relação aos colonizadores. Uma invasão em larga escala estava sendo planejada e os fracassos da ocupação da Bahia serviram de lição. Para conquistar a terra era preciso garantir a aliança dos indígenas, ou pelo menos sua neutralidade.
Foi com essa preocupação que surgiu um dos documentos mais interessantes sobre o Brasil. Talvez o primeiro registro do conhecimento cartográfico indígena sobre as terras que habitavam. Poderíamos dizer, sem muito medo de errar, que este foi o primeiro mapa indígena do Brasil. Mesmo que não tenha sido um mapa propriamente desenhado, mas apenas uma descrição, ela supria a curiosidade e as lacunas da cartografia que os holandeses vinham reunindo avidamente. Este relato chegou até os dias de hoje na forma de dois registros manuscritos: o primeiro traduzido para o francês em 1907 e o segundo para o português em 2007. Surpreende que nesses cem anos de intervalo não se tenha tentado georreferenciar a descrição fornecida pelos indígenas.
Nota sobre o mapa: dividimos o mapa/relato dos indígenas em oito camadas que indicam os tipos de lugares que foram enumerados pelos mesmos. São elas: alguns [1] marcos geográficos; enumeração de uma grande quantidade de [2] povos indígenas da região; há também a indicação de lugares do mundo colonial, temos desde locais de empreendimentos econômicos extrativistas, como extração de [3] madeira, [4] salinas e [5] possíveis minas; até infraestrutura dos [6] núcleos coloniais, [7] engenhos e [8] currais.
Como navegar: Ao passar o cursor por cima dos pontos do mapa é possível conferir os trechos do documento referente a cada um deles. Para instruções de como explorar essa ferramenta clique aqui.
Nesse período os indígenas desempenharam papel fundamental em praticamente todos os cenários possíveis, principalmente naqueles das guerras. Mesmo após décadas de massacres, epidemias e subjugação, a população indígena ainda era significativa, com ares de independência e insubmissão. Seus líderes eram habilidosos tanto na guerra, quanto na política. Manipulavam códigos culturais diversificados e viajavam entre os continentes fazendo apostas altas e arriscadas. Tendo esperança de, ao apoiar o lado vitorioso, conquistar espaços e garantias para os grupos que lideravam. Seus atos foram inscritos tanto nas crônicas coloniais, quanto em sua própria língua, um fato raro em outros momentos históricos.
Três léguas além, um rio, Igaraçu; além dele a ilha de Itamaracá.
Nesse rio há uma fortaleza construída da madeira e depois tapada com argila e palha para maior força. A cidade da Paraíba fica três léguas desta fortaleza, rio adentro. Uma vez que os brasilianos entre este lugar e o Rio Grande são petivares, subjugados pelos portugueses e, portanto, inimigos dos potiguares – a nação dos nossos brasilianos – eles não conhecem tão bem a situação desse lugar como os outros onde eles tinham acesso livre. Estes brasilianos são potiguares, agora amigos dos portugueses, e antes dos franceses.
Duas léguas ao norte do Miriri corre um rio Mamanguape. Aqui há moradores portugueses que trazem manteiga e queijo ao mercado da Paraíba. Têm muito gado e produzem muito tabaco.
Uma légua da Baía da Traição há um pequeno rio para chalupas, chamado Camaratuba[7]. Três léguas rio acima há um engenho de açúcar, que queimaram quando lá esteve o general Balduíno Hendricksz, e que aparentemente foi reedificado. Aqui não mora outra gente senão a do engenho.
Quatro léguas além, de Camaratuba encontra-se uma grande aldeia chamada Tabussuram, onde moram os tiguares, sob o comando de seu cacique Jaguarari. Pelo que tinha favorecido a Balduíno Hendricksz, ele fugiu aos tapuias, mas voltaria se tivesse ocasião.
A uma légua da Baía Formosa segue um rio para iates, chamado Curimataú, que tem engenho de açúcar três léguas rio adentro. Os iates não chegam tão longe, e deve continuar-se navegando uma légua em chalupas.
A três léguas de Guiraire está o riacho Tareyrick, onde há pau- amarelo, chamado Tatayouba; também ferro, que chamam de ita, há a duas léguas no interior. A uma légua de Tareyrick encontra-se um riacho de água fresca onde não moram portugueses, chamado Pirangi ou Porto e Búzios.
A cinco léguas de Pirangi há um grande rio: Rio Grande, e em brasiliano chama-se Potengi,[8] onde na entrada a beira do rio e do lado de Pirangi está uma fortaleza construída de pedra com uma guarnição de 40 soldados e 9 peças de metal. Mas, segundo o piloto que esteve preso na Paraíba durante 33 meses,[9] conta com 80 soldados e 29 peças. É preciso conquistar este lugar. Com os navios é possível chegar-se bem perto do castelo.
A muralha está fundada no chão e a artilharia fica tão alta que será possível postar-se abaixo dela para demolir a muralha; o inimigo não poderia fazer mais dano que atirar pedras. A porta da fortaleza deve ser escalada por meio de uma escada. Perto dela há uma aldeia de oito casas de portugueses, além da igreja. Também há aqui um engenho de açúcar, com cinco portugueses e alguns negros. Aqui há muito gado por causa das boas pastagens. Lá cultivam muito gengibre, que chamam mangaratay.
Estes brasilianos julgam que é possível conquistar Rio Grande com seis a oito navios e iates, uma vez que os portugueses não contam com amigos entre os brasilianos mais ao norte; cujo brasilianos de várias regiões logo se associaram conosco: a saber duas espécies de tapuias com muita gente e de grande estatura. Eles lutam com dardos sem arco, e moram em Yguasu, Guararick e vizinhança. Também os jandouys, que também lutam com dardos manuais, os quais vivem detrás dos tapuias no interior; os lugares deles se chamam Ytsyoso, Pinodua, Ariguanrick etc. E note-se que em Araguanuch se encontra a pedra azul que chamam Ytawuh[10], da qual eles fazem contas; e nós pensamos que se trata do acori[11], cujo peso pagam em ouro na costa da Guiné.
Além de que estas nações – e sobretudo os potiguares que vivem detrás da Baía da Traição – gostariam muito de ajudar-nos a combater os portugueses no interior da Paraíba e de Pernambuco, pelo que lhes infligiríamos o maior prejuízo: eles não têm inconveniente em marchar umas cem léguas contra seus inimigos, tendo os do Ceará – na presença do nosso Gaspar – combatido os portugueses até o rio Camusipe – onde lhe feriram a panturrilha que ainda está com a bala nela – a uma distância de mais de 50 léguas de lá; como também nos tempos do Balduíno Hendricksz do Ceará à Baía da Traição, que são mais de 100 léguas.
Devem portanto o quanto antes – porque se aproxima a monção do norte com a qual é fácil de voltar – mandar dez a doze navios medianos e iates, tripulados com 600, 800 a novecentos soldados e 300 a quatrocentos marinheiros ou quantos podem sem problema dispensar durante algum tempo – ao Rio Grande sob experimentados comandantes para atacar seu castelo e conquista-lo com a ajuda de Deus. E quando este lugar resulta estar mais forte ou melhor guarnecido do que pensamos, devemos atacá-lo por meio de trincheiras e tratar de convencer os brasilianos acima mencionados a que nos assistam; também mandar a essa campanha os nossos acima mencionados brasilianos. Esta gente deve ser provida de víveres para 3 a 4 meses, e também – por princípio – algumas carregações[14] para comprar mais vitualhas e estabelecer o negócio; e não duvidamos que eles contenham boa quantidade de farinha, ervilhas, feijão, e outras vitualhas dos selvagens para mandar a Pernambuco. Logo depois da realização dessa tarefa devem tratar de ocupar os quatros engenhos de açúcar que se encontram a norte da Paraíba – que apenas são defendidos – ou tratar de negociar com eles para trocar nossas mercadorias pelos açucares deles, e dessa forma começar a estabelecer o negócio. Também o pau-brasil pode ser cortado lá em grandes quantidades e sem perigo, principalmente o de Piranga, que fica a pouca distância.
Estes navios devem ter ordem para, quando possível, comunicar suas façanhas a Pernambuco. E depois de terminar suas tarefas no Rio Grande devem deixar uma guarnição adequada na fortaleza, fortificá-la contra as violências, aprovisioná-las de todo o necessário; expulsar ou evacuar os moradores portugueses, menos os de engenho de açúcar.
Seguidamente – se os brasilianos mostrarem vontade de marchar por terra com a nossa gente em quantidades para Paraíba ou Pernambuco, e quando conhecem bem o caminho – deve se considerar-se a conveniência de acrescentar alguns soldados armados à tropa, para marcharem dessa forma aí, e também levar conosco todos os capazes de andar, para aumentar a chance de conquistarmos os lugares que os portugueses possuem no caminho. E inventar meios de informar-nos da sua chegada, para que lhes possamos mandar reforços de Pernambuco. Também mandar dois iates do Rio Grande ao sul a Pernambuco, e igualmente dois iates ao Maranhão, que entrem em todos os rios, baías e riachos para comunicar a nossa vitória aos brasilianos. Entretanto, tratar de fechar alianças com eles, estabelecer negócios, obter vitualhas e investigar tudo o que lá se passa: tal como vem descrito aqui de lugar a lugar, acrescentando todo o esquecido. No caso de os iates mandados ao norte não poderem voltar, devem seguir por toda a Costa Selvagem[15] e voltar à pátria pelas Índias Ocidentais.
Uma légua além, há um rio para iates chamado Guaratahug. Entrando e subindo nesse rio com chalupas chegar-se-á a uma nação de tapuias inimiga dos portugueses – já amplamente mencionada acima – detrás da qual vivem os nhanduís. Neste rio, como também no Carwaretame, pode obter-se qualquer informação dos brasilianos, desde que haja um perito do idioma.
Dois a três dias de viagem terra adentro há uma montanha chamada Alto de Wickoro, onde se acha tatawick – e eles não duvidam tratar-se de nitrato – o qual goteja da montanha abaixo em pedacinhos do tamanho de ervilhas, e duros como sal.
A uma légua de Mocuru encontra-se o rio Ceará, com água fresca. Podem entrar nele os iates, desde que não sejam muito grandes, porque os maiores ficariam melhor assegurados na Baía de Mocuru, onde podemos comodamente defender e fortificar.
Os franceses estiveram em Tapiruch, mas não foram além.
As mercadorias que esta gente gostaria de receber preferentemente são as seguintes: aoba, que são vestidos para homens e mulheres de tecidos ligeiros, segundo o modelo do nosso povo. Actinokug: camisas. Akanga-aobatinga: chapéus cinzentos. Kuguaba: pentes de marfim. Kisee: facas diversas. Pirania: tesoura de barbeiro. Daban: navalhas de babear. Bovura: contas diversas. Tangepenne: facões. Kisse-aparre: facões grandes e pequenos. Juga: machados. Uarouwa: espelhos. Pinda: anzóis. Inyaesingha: potes de ferro. Nymbahia: fio e agulha.
Eles oferecem em troca: pau-preto e pau-mosqueado, algodão, tabaco, pimenta do Brasil, favas turcas, óleo balsâmico e pedra azul. Também nitrato podem oferecer.
Aqui estaria uma mina de prata, vista por Gaspar, perto de uma montanha chamada Ybouyapaba[19], a qual De Laet descreve no seu livro[20]. Encontra-se do outro lado do rio, dois dias de viagem rio acima a partir do mar.
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Descrição da costa do nordeste do Brasil entre Pernambuco e Rio Camocipe, do relatório dos brasilianos seguintes: Gaspar Paraupaba do Ceará, da idade de 60; Andrês Francisco do Ceará, da idade de 50 anos; Antônio Paraupaba de Tabussuram, que fica na distância de 2 dias no interior da Paraíba, da idade 30 anos; Pedro Poti, da idade de 20 anos. In.: LAET, João de: Roteiro de um Brasil desconhecido [Descrição das costas do Brasil – Manuscrito da John Carter Brown Library, transcrito, traduzido e anotado por B. N. TEENSMA]. Petrópolis, Rio de Janeiro, RJ, Brasil: Kapa Editorial, 2007. Pág. 134-146.
* Esta descrição encontra-se com variantes também nas pág. 68 a 72 do Roteiro de Hessel Gerritsz de 1629, na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e pode ser consultada neste link:http://memoria.bn.br/pdf/402630/per402630_1907_00029.pdf
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CASCUDO, Luís da Câmara. Informação geográfica do Ceará Holandês. Revista do Instituto do Ceará. LV. Ano LV (1941), p.68-80.
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MEDEIROS Filho, Olavo de. Os holandeses na Capitania do Rio Grande. Natal, Rio Grande do Norte, Brasil: IHGRN, Depto. Estadual de Imprensa, 1998.
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PEREIRA, Levy. Coleção Levy Pereira: Atlas Digital da América Lusa (2017).