“Lembro dos queijos lindos que ficavam em cima das mesas de café, mas que eu não podia tocar; pois ela marcava com um risco de faca, para saber se a negrinha ia mexer. Ela era portuguesa!”. O depoimento de Marinete Ferreira, 64 anos, parece ter sido extraído de um livro de história, mas é uma história real e que, ainda hoje, muitas brasileiras negras que “trabalham em casas de família” de suas “madrinhas” vivem.
Racismo estrutural é o termo utilizado para identificar estruturas na sociedade que se baseiam na discriminação e privilegia algumas raças causando danos a outras. No Brasil, como em muitos outros países, essa distinção favorece os brancos. Dona Marinete é mãe de dois filhos. Divorciada, a professora negra, ainda quando criança, descobriu o quão violenta a segregação racial é. Nascida no interior de Pernambuco, de origem humilde, seus pais trabalhavam num engenho de cana. Ainda criança perdeu seu pai, que era o capataz da fazenda, assassinado. Viúva, sua mãe com oito filhos foi despejada da casa onde vivia e teve seus filhos postos para “adoção”.
“Os mais velhos e fortes, as pessoas foram levando (para “adotar”), pois eram bons pra serviços de casa, e eu fui ficando por último, pois era a menor e não servia. Fui “adotada” pelo patrão (dono da fazenda) que me levou para a casa dele, sua esposa que seria minha “madrinha” me colocou nos afazeres de casa ainda muito pequena. Não tinha acesso à escola, nem direito a infância. Aprendi desde muito pequena que servia para distrair seus netos, ajudar a cuidar da casa e a servir as visitas.” Conta Marinete.
Diante de tantas dificuldades, Marinete não desistiu e contrariou todas as estatísticas. Estudou, se formou, batalhou e conseguiu a muito custo travar a engrenagem do preconceito. Determinada, a professora construiu sua própria escola, uma creche que atendia as crianças do bairro. “Passei muitas batalhas, até fiscais da prefeitura que me perguntavam: onde está a dona da escola, pais de alunos que me perguntavam se eu era professora mesmo, outros que falavam que eu tinha que prender meu cabelo ou amarrar ‘isso’ para ter uma aparência melhor,’ é melhor alisar o cabelo, vestir roupas mais claras, para dar um tom mais claro a sua pele para parecer diretora.’ Tive que enfrentar muito preconceito, muito pai de aluno inadimplente que achava que podia me ameaçar por ser mulher e negra, lutei contra o preconceito a vida inteira, estudei muito para chegar aonde cheguei.”
Empreendedora, decidiu encerrar as atividades da escola somente por um motivo: Poder ter mais tempo para ficar com seus filhos e netos. Com nove especializações na área da educação, Marinete acredita que somente com a educação podemos mudar tantas histórias tristes pelo país. “Só a educação transforma vidas! Muitos poderosos não querem você estudando, não querem você inteligente, questionando, pois eles perderiam o poder, que “acham” exercer sobre você; por isso estude e busque sempre o conhecimento, isso nada e nem ninguém pode te roubar ou tirar de você”.
Em um Brasil mais recente, mas não menos cruel, surge a história de Cecilia, 42 anos. Mãe solo que, assim como Marinete, desafiou, lutou e conquistou seu espaço de direito como mulher negra dentro de um país onde o racismo existe, mas não é assumido. “Todo mundo sabe o que é racismo, mas ninguém é racista. Tem uma questão de racismo estrutural/institucional muito forte, mas ninguém assume. Todo mundo acha horrível o racismo, mas ninguém enxerga o racismo. É muito difícil mudar algo quando a gente não se enxerga. Eu sofri muito, não só por ser negra, mas por ser mãe solo de dois filhos. Ter que lidar com tudo isso é muita desvantagem”.
Cecilia Santos é Procuradora do Trabalho e coordenadora da Procuradoria do Trabalho no Município de Araguaína, no Tocantins. Durante sua jornada até o MPT, vivenciou diversos tipos de preconceitos tanto na faculdade, nos gabinetes que passou e principalmente como Juíza.
“Quando eu era juíza, eu não usava toga, eu não gostava dessas coisas que hierarquizam. Mas eu tive que usar poque as pessoas entravam na sala, me viam de terno ou blazer e perguntavam ‘que horas a Dra. Cecilia chegaria.’ É um corpo estranho num espaço que sempre foi hierarquizado pela elite branca, feito para a elite branca. As pessoas estranham, elas não aceitam você ali. É sempre um susto. A gente vive numa democracia de baixo impacto. Onde é que estão as pessoas negras nos espaços públicos de poder?”
Mesmo com leis que garantem a igualdade entre os povos, o racismo é uma ferida aberta que nunca sara e aflige nossa sociedade até hoje sem perspectiva de uma melhora real. Se a maior parte dos brasileiros são negros (54%), porque quase todos os parlamentares são brancos? Se as mulheres negras são 28% da população, porque elas continuam fora dos altos cargos desse país? São alguns dos questionamentos da procuradora e de muitas(os) negras e negros.
Mesmo adotando ações afirmativas de inclusão racial, a predominância hierárquica ainda é branca. “As pessoas te olham como mulher preta, mãe de dois filhos, ‘ela não tem perfil de quem vai ascender em uma carreira jurídica’, então ela nem devia estar ali ocupando aquele cargo”, completa Cecilia.
A procuradora, que é a idealizadora do projeto Ubuntu, que beneficia 200 famílias dos Quilombos do Grotão, São Joaquim, Lajeado, Lajinha, Baião, Carrapiché, Prachata, Ciriaco e Ilha de São Vicente, todos no Tocantins, mostrou que é possível ascender na carreira jurídica e fazer bem mais por quem mais precisa.
O Ubuntu faz parte do Àwúre, projeto nacional presente em 6 estados brasileiros, de iniciativa do Ministério Público do Trabalho (MPT), da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e que busca levar o trabalho decente e o respeito às tradições e direitos dos negros(as), quilombolas, indígenas, ribeirinhos(as) e população de terreiros de religião de matriz africana.
Matheus de Araújo, de 26 anos, morador de uma comunidade quilombola bem distante do Tocantins, em Feira de Santana, na Bahia, a 100 km de Salvador, foi aprovado para o curso de Medicina na Universidade Federal do Recôncavo Baiano, atingindo 980 pontos na redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Filho de pedreiro e de uma dona de casa, seus pais não tinham como ajudar financeiramente. Então para suprir essa necessidade, Matheus trabalhava em um turno e no outro período dava aulas. Foram mais de 20 vestibulares e 8 Enem até conseguir entrar na Faculdade, mas ele não desistiu.
“Hoje em dia eu me vejo como referência para jovens negros de periferia que não têm recursos, olham para mim e falam, ‘Esse negão conseguiu, eu também irei conseguir’, eu me sinto lisonjeado pelas pessoas me olharem dessa forma e eu tento ajudar essa galera”. Conta Matheus.
Hoje, 20 de novembro, é celebrado o Dia Nacional da Consciência. A data é um símbolo da luta do movimento negro no país e foi escolhida por ser o dia em que Zumbi dos Palmares, líder do Quilombo dos Palmares, foi morto em 1695. Formado por escravos fugidos de engenhos, o Quilombo dos Palmares foi o maior espaço de resistência dos negros à escravidão na época do Brasil colonial (chegou a ter mais de 20 mil habitantes) e o que durou mais tempo, cerca de 100 anos. O quilombo, que ficava no estado de Alagoas, foi invadido e destruído por uma expedição bandeirante em 1694. Zumbi foi capturado no ano seguinte, quando foi morto e decapitado, mas a luta nunca parou. Na época, a mulher dele, Dandara dos Palmares, assumiu a liderança do grupo. O 20 de novembro é um momento de relembrar a luta do povo negro e questionar a herança escravagista e o racismo na sociedade brasileira.
O Àwúre acredita e apoia o povo negro e busca formas de ajudar todas, todes e todos a superar as dificuldades impostas pelo preconceito através das suas iniciativas espalhadas por todo Brasil. Busca maneiras para que as histórias de Matheus, Cecília e Marinete não sejam exceções, mas sim regras. Que todes tenham oportunidades e direitos iguais, independentemente de sua cor de pele.
Para isso, Marinete deixa uma mensagem que aprendeu com a vida. “Uma mensagem que deixo não só para mulheres negras, mas para todas e todos: o mundo é seu, a sua luta é a luta de tantas outras mulheres e homens negros (as), por isso não desista! Você pode ser exemplo para alguém que te observa.”