Conheça os desafios e avanços conquistados no âmbito da segurança alimentar no Brasil e qual a sua relação com a garantia do direito ao trabalho digno
A segurança alimentar diz respeito ao direito de todos terem acesso regular e permanente a alimentos básicos de qualidade. O termo “segurança alimentar” começou a ser utilizado durante a I Guerra Mundial em decorrência do aumento da fome na Europa. Já em 1948, a Organização das Nações Unidas proclamou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, na qual reconheceu a alimentação como um dos direitos humanos básicos.
No Brasil, país em que a desigualdade econômica e social se reflete diretamente no acesso à alimentação, a segurança alimentar é pauta importante. Neste sentido, a justiça trabalhista se mostra essencial para a promoção desse direito humano básico, já que a relação entre trabalho e segurança alimentar é intrínseca e reflete-se diretamente na vida dos brasileiros. O emprego não apenas proporciona a renda básica para a aquisição de alimentos, mas também influencia diretamente a qualidade e a regularidade dessa alimentação. Trabalhadores com empregos estáveis e seguros e salários dignos têm maior capacidade de garantir uma dieta equilibrada e nutritiva para si e para suas famílias.
Apesar dos avanços que o Brasil experimentou no combate à fome ao longo das últimas décadas, ainda há desafios persistentes em relação ao mapa da fome global. O país testemunhou um aumento na conscientização e nas políticas voltadas para a segurança alimentar, reduzindo significativamente a prevalência da fome nos anos 2010, com a consolidação de programas sociais como o Bolsa Família em conjunto com a promoção da agricultura familiar e de ações de inclusão social, conseguiu avançar na redução da desnutrição e da pobreza extrema, saindo do Mapa da Fome em 2014. Infelizmente, nos anos posteriores, o país voltou a despencar nesses índices, voltando oficialmente ao Mapa da Fome em 2022. Segundo dados do relatório “O Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo (SOFI)“, da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), em 2022, 70,3 milhões de pessoas estavam em estado de insegurança alimentar moderada, enquanto 21,1 milhões de pessoas no país estavam em insegurança alimentar grave, caracterizado por estado de fome.
Para a procuradora do Ministério Público do Trabalho, integrante do GT Comunidades Periféricas e coordenadora do Eixo “Periferias” do Projeto Àwúre, Elisiane Santos, o direito humano à alimentação adequada está totalmente relacionado ao direito ao trabalho digno, em observância aos direitos trabalhistas, já que “a pessoa que está passando fome, ou seja, aquela que não faz as refeições básicas diárias, é um alvo propício a aceitar ser explorada nas mais perversas e violentas formas de exploração, como é o caso do trabalho escravo”, frisa. A procuradora do Trabalho destaca ainda a situação de crianças e adolescentes que estão expostas a essa insegurança: “quando falamos de trabalho infantil, falamos de famílias que estão passando por situação de vulnerabilidade extrema e que ficam em uma condição mais propensa a serem vítimas dessas formas perversas de violência que acontecem no âmbito do trabalho”.
Os principais entraves à segurança alimentar no Brasil têm a desigualdade social como fator determinante, o que impacta diretamente as populações vulneráveis, como os povos indígenas e as comunidades tradicionais, bem como o povo periférico, que é constantemente marginalizado. Dessa forma, a disparidade econômica no Brasil faz com que algumas regiões desfrutem de uma oferta diversificada de alimentos enquanto outras enfrentam escassez, limitando o acesso a alimentos nutritivos. Outro fator de impacto são as mudanças climáticas, que provocam eventos extremos, como secas prolongadas e enchentes que afetam diretamente a produção de alimentos.
A atuação dos órgãos de justiça no enfrentamento à insegurança alimentar é norteadora. Nesse sentido, o papel desempenhado por órgãos como o Ministério Público do Trabalho e do Conselho Nacional do Ministério Público é essencial: “No âmbito da Comissão de Defesa dos Direitos Fundamentais do CNMP existe um grupo de trabalho com o tema Segurança Alimentar e População em Situação de Rua. Esse grupo é formado por 15 membros do Ministério Público de diferentes ramos, eu represento o Ministério Público do Trabalho. Essa comissão tem o objetivo de traçar estratégias de atuação para todos os Ministérios Públicos frente as questões que envolvem segurança alimentar e população em situação de rua”, frisa a procuradora do Trabalho e coordenadora do eixo Periferias do projeto Àwúre, Elisiane Santos. Para ela, a participação desses grupos sociais no processo de definição de políticas públicas é necessária: “O nosso objetivo, do MPT através do projeto Àwúre, é assegurar que o nosso povo periférico, nossas comunidades tradicionais e os nossos povos originários sejam considerados, e mais do que isso, sejam ouvidos e estejam presentes na construção da política que vai impactar suas vidas e a de todos os brasileiros”, destaca.
Durante a pandemia de Covid-19, a fome e a precarização do trabalho se agravaram de forma alarmante, com a terceirização como porta de entrada para condições de trabalho análogas à escravidão. O período de pandemia e pós-pandemia foi ainda mais brutal para as comunidades periféricas, os povos originários, as comunidades tradicionais, em relação à segurança alimentar: “os impactos foram além da divisão, da ausência de trabalho, da falta de inclusão ou até de dificuldade de desenvolver um trabalho nos territórios, voltado à produção para a comunidade, por isso a importância de projetos como o Àwúre”, Elisiane chama a atenção. O Projeto Àwúre é uma ação do Grupo de Trabalho do Ministério Público do Trabalho “Povos Originários, Comunidades Tradicionais e Periféricas” executado em parceria estratégica com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), com o Escritório das Nações Unidas de Serviços para Projetos (UNOPS) e com o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS).
“O projeto Àwúre tem compromisso com a agroecologia, com os processos de produção livres de qualquer forma de exploração de trabalho, livres de qualquer possibilidade de violação, de qualquer dano, ou mesmo qualquer forma de produção que não tenha atenção à proteção do meio ambiente, especialmente porque tem o seu próprio fundamento na base do conhecimento ancestral. Nós temos esse olhar de respeito para os conhecimentos dos povos originários, que nos orientam, que nos dão a base do conhecimento que precisa ser trazido também para o mundo jurídico, para o olhar da proteção e da legislação que se pretende implementar”, completou a procuradora do Trabalho.
Em um país tão vasto e diverso como o Brasil, para garantir um futuro mais seguro e nutritivo para todos os brasileiros, é necessária uma combinação de abordagens, em diversas frentes, com a ampliação e a implementação de programas de transferência de renda; o desenvolvimento da agricultura familiar e da agroecologia; a melhora da legislação voltada aos públicos com maior vulnerabilidade alimentar; e a educação alimentar.