Por: João Paulo Peixoto Costa
Em 31 de julho de 1822, indígenas de Baepina (atualmente Ibiapina, no Ceará) agrediram o padre Felipe Benício Mariz e outras autoridades da região. Assim,
conseguiram expulsá-los da localidade vizinha Vila Viçosa (hoje Viçosa do Ceará), na fronteira com o Piauí.
Em relatos escritos sobre o ato nas décadas seguintes, ficou marcado o protagonismo das mulheres, que deram pescoções, pancadas com a mão aberta na parte de trás do pescoço, nos agredidos.
Delas, só sabemos o nome de Dionísia, que chegou a esbofetear o religioso. Não conhecemos mais detalhes da vida dela e de suas companheiras, além de serem de aldeamentos onde foram reunidos os povos Anacé, Reriú, Aconguaçú e Tabajara no século 17.
No entanto, por meio da sua revolta, podemos puxar o fio de um contexto complexo de violência, silenciamento e luta das mulheres indígenas na Independência.
As reclamações indígenas eram muito antigas nas regiões do Brasil que, no início do século 19, ainda eram regidas pelo Diretório, legislação que buscava a integração desses povos por meio do trabalho e da mudança nos costumes. A lei garantia terra, liberdade e cargos nas Câmaras Municipais às lideranças indígenas das chamadas “vilas de índios”. Mas, considerados incapazes, eram obrigados a fazer o trabalho de aluguel, quando um proprietário contactava o diretor para alugar mão-de-obra indígena.
Os diretores eram o foco das queixas indígenas sob o Diretório. Eram descritos como violentos e ambiciosos por roubar o pagamento dos seus dirigidos, enviar crianças para trabalhos em locais distantes e degradantes e os tratar como escravizados.
Esse último ponto era particularmente sensível para os indígenas: ainda que resistências e tentativas de abolição do Diretório tenham existido, era grande o valor dado à liberdade garantida pela lei. Daí decorre a gratidão especial que demonstravam à monarquia.
Nos casos de Vila Viçosa e Baepina, é bastante representativo um requerimento indígena de 1814, pedindo a abolição do Diretório. Entregue pessoalmente por uma comitiva a dom João 6º, o documento detalhava o histórico de todos os diretores que por lá passaram.
Segundo eles, os diretores espalhavam mentiras, caso da afirmação de que os direitos indígenas teriam sido anulados. O que ocupava o posto à época, Antônio do Espírito Santo Magalhães, insistia que as honras, os privilégios e a liberdade tinham acabado.
A situação era ainda mais degradante para as mulheres, tratadas como escravizadas, castigadas com palmatórias e obrigadas a prestar serviços para as senhoras brancas.
Para os exploradores do trabalho indígena, os direitos garantidos pelo Diretório eram inadmissíveis. Por isso, foram tão interessantes as notícias vindas de Portugal a partir de 1820, com a Revolução do Porto.
O movimento criou um governo para o império, as Cortes de Lisboa, que iniciaram seus trabalhos em 1821 e visaram limitar o poder do rei por uma Constituição, o que resultou no seu retorno para a Europa. As transformações soaram ameaçadoras para os indígenas porque coibiam a capacidade de ação do monarca que tradicionalmente os protegia.
Foi nesse contexto que explodiu a fúria de Dionísia e de suas companheiras, que não agiram motivadas por uma raiva irracional, mas pela defesa de seus direitos. Isso fica ainda mais explícito quando se examina a documentação produzida pela Câmara Municipal de Vila Viçosa, composta também por indígenas.
Dois elementos se destacam: a defesa do então príncipe dom Pedro, o monarca que ficou, e a denúncia de que os escorraçados eram adeptos da Constituição de Lisboa, como o já citado diretor Antônio do Espírito Santo Magalhães, o mesmo que bradara anos antes contra os direitos indígenas.
A revolta do grupo de Dionísia não foi um ato isolado do processo de Independência. Ao contrário, deu início a uma série de ações contestatórias: o motim indígena de Maranguape de setembro de 1822, que motivou a punição física de mulheres envolvidas; a adesão ao movimento que depôs o governo do Ceará em dezembro; os saques realizados pela tropa de indígenas de Viçosa contra os ricos na guerra de independência do Piauí em abril de 1823.
Mesmo assim, as mulheres indígenas não foram mencionadas pelos vereadores. Sem os relatos de décadas depois, nem sequer saberíamos de seu protagonismo.
Esse silêncio ensurdecedor remete ao reduzido espaço de atuação feminina indígena, o que fazia da violência física o caminho possível. Por outro lado, tanto as bofetadas das mulheres quanto os textos dos vereadores nos lembram que a atuação política indígena e de tantos outras/os subalternizadas/os foi muito mais intensa do que os antigos livros de história puderam nos contar.
Projeto retrata mulheres ao longo da história do Brasil
O projeto Mátria Brasil apresenta mulheres relevantes e, em geral, pouco conhecidas ao longo da história do país, desde a invasão portuguesa até os dias de hoje. Os textos são assinados por historiadoras e historiadores de diversas regiões brasileiras, e têm publicação semanal ao longo de seis meses.
A série foi idealizada pela professora do departamento de história da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Patrícia Valim, que também é uma das coordenadoras do projeto.