Por Marcos Rezende
No candomblé tem um Itan (conto) em que Xangô perde a sua filha amada. Ele não aceita de forma alguma a morte da sua filha. A inversão da lógica da natureza onde os filhos devem enterrar os pais. Desesperado e se achando injustiçado Xangô faz tudo o que está ao seu alcance para rever a sua filha! A sua luta por justiça não tinha fim.
Hoje eu dedico esse itan a Mãe Bernadete. Figura de fala mansa e coração inquieto. Pessoa simples e que liderava o Quilombo Pitanga dos Palmares com muita generosidade ao tempo e, ao mesmo tempo que lutava para garantir direitos para a sua comunidade, como Ialorixá que era, cuidava do espírito e das boas energias das pessoas. Em meio a tudo isso clamava justiça por seu filho Binho. Liderança quilombola assassinada a 6 anos atrás por lutar para garantir a titulação de terras para a comunidade de Pitanga dos Palmares.
Mãe Bernadete também nunca arredou o pé dessas duas demandas centrais da sua vida: descobrir e colocar atrás das grades quem mandou matar seu filho e garantir a posse de terra para a sua comunidade.
E nesse processo ela amou. Amou e entregou tudo o que podia entregar. Ela lutou para garantir segurança alimentar para a sua comunidade, assim como projetos sociais, dignidade, respeito, direitos. Todos os direitos que a constituição federal tanto fala mas pouco entrega para o povo preto, para as comunidades tradicionais, sejam os quilombolas, sejam os religiosos de matrizes africanas, sejam as demais comunidades que vivem tais situações de insegurança.
Quantas vezes vi ela ligar para autoridades, quantas vezes eu a vi chegar em eventos com seu vestido colorido, seu ojá a cobrir o Ori (cabeça), sorriso de canto de boca a pedir a benção para as pessoas, daí seguir com seu caminhar lento e cheio de intensidade e então se sentar abraçada a sua sacola e, na primeira oportunidade passar a mão no microfone e denunciar.
Não foram as poucas vezes que me ligou e contou meio que em tom de desabafo as suas angústias. Outras tantas me cobrava uma ida até o quilombo e quando lá eu chegava era tratado com toda a dignidade e cuidados possíveis. Dava e/ou dividia tudo o que tinha menos a sua sede por justiça.
Sim, ela sabia do risco que corria nesse que é um estado espacializado ou em matar ou em deixar os negros defensores de direitos humanos e testemunhas de violências viverem e morrerem à própria sorte. O estado mais violento do Brasil para as pessoas pretas. O estado que mais descuida dos defensores de direitos humanos. O estado que não toma atitudes extremas diante de crimes tão violentos e que ceifam a vida do nosso povo. Bahia, um estado genocida denunciado no mundo inteiro. Por Mãe Bernadete, pelo Coletivo de Entidades Negras, por todo o movimento negro brasileiro. Mas quem vai preso por esses crimes? É possível lembrar de um único caso de mandantes por tais violências serem encontrados e julgados? Eu, sinceramente desconheço.
Também não podemos prescindir que são corpos negros, são pessoas negras. Não estamos falando de Dorothy Stang, de Dom Philipps ou Bruno Pereira.
As grandes organizações nacionais e internacionais que tem toda uma estrutura e as melhores condições de pressionar os governos não o fazem com a mesma intensidade que coletam recursos utilizando a justificativa dos nossos corpos sob a mármore fria do IML. Maior parte do governo trata no binômio entre a conveniência dos votos e o descaso posterior. O judiciário nos coloca como culpados antes mesmo do transitado e julgado e os meios de comunicação nos apresentam como seres violentos de forma sistemática a nos desumanizar.
Aqui seguimos nós as pessoas negras e não negras antirracistas, entre memes, frases de efeito (a favela venceu), gritos por justiça e sonhos de um porvir que insiste em não nos alcançar.
Vai em paz Mãe Bernadete e dê um forte abraço e muitos beijos em seu filho Binho e cuida do tempo no Orum (Paraiso), nesse mundo invisível em que a nossa chegada é esperada com honras e glórias. Nos vemos em breve.
MARCOS REZENDE É FUNDADOR DO COLETIVO DE ENTIDADES NEGRAS E DOUTORANDO EM DIREITOS HUMANOS PELA UNB