De que mulher negra falamos? Qual sua história e sua contribuição para a identidade feminina brasileira? Estas são perguntas que devemos sempre nos fazer quando falamos da mulher negra e afro-religiosa no universo do trabalho. Não deveria, mas, não raro, a escolha de credo/ crença/ orientação religiosa tem sido levada em conta pelas empresas na hora da contratação. Daí a importância de nos debruçarmos sobre o tema das barreiras de acesso da mulher negra e afro-religiosa no universo do trabalho porque é fato, a violência do preconceito, do racismo, da intolerância e da discriminação racial e religiosa é sentida como algo único e solidário por quem a sofre na medida em que afeta, de forma contundente, a sua dignidade.
Trata-se de um preconceito velado, que restringe o acesso ao mercado de trabalho de afro-religiosos, em especial as mulheres negras, porque sobre elas pesa tríplice discriminação: gênero, étnico-racial e orientação religiosa, que se agrava quando agregamos a estes fatores outros fatores que também trazem consigo as marcas do preconceito, do racismo, da intolerância e da discriminação: orientação sexual ou identidade de gênero.
Apesar da existência de vedação constitucional e legal expressa para tal prática, o fato é que, no país, 80% das pessoas de religiões de matriz africana, em sua significativa maioria mulheres, sofrem restrições no mercado de trabalho, seguida das mulheres muçulmanas, com 70% .
Refletindo sobre este quadro nos remetemos a Abdias Nascimento , que apresenta um iter histórico pós-abolicionista que persiste até os dias atuais, lembrando que, antes de 1950, no Brasil, a discriminação racial para acesso ao emprego era uma prática corrente, sancionada pela lei consuetudinária, tanto assim que os anúncios de oferta de emprego continham uma explícita advertência: “não se aceitam pessoas de cor”, situação que, pensava-se, seria revertida após a promulgação, em 1951, da Lei Afonso Arinos – Lei no 1.390, de 3 de julho de 1951-que proibiu a discriminação racial no Brasil, constituindo-se no primeiro diploma normativo brasileiro a incluir entre as contravenções penais a prática de atos resultantes de preconceito de raça e cor da pele. Sobre este iter normativo pertinentes ontem, como hoje, as observações de Abdias Nascimento, quanto aos mecanismos de seleção no mercado de trabalho na sua relação com a nossa pseudo-democracia racial e as cicatrizes que se perpetuam como marcas indeléveis, que só quem as sofre sabe o quem elas significam em suas vidas:
As feridas da discriminação racial se exibem ao mais superficial olhar sobre a realidade social do País.
A ideologia oficial ostensivamente apoia a discriminação econômica- para citar um exemplo- por motivo de raça. Antes de 1950, a discriminação em empregos era uma prática corrente, sancionada pela lei consuetudinária. Em geral, os anúncios procurando empregados se publicavam com a explícita advertência: “não se aceitam pessoas de cor”. Mesmo após a lei Afonso Arinos, de 1951, proibindo categoricamente a discriminação racial, tudo continuou na mesma…Depois da lei, os anúncios se tornaram mais sofisticados que antes: requerem agora “pessoas de boa aparência. Basta substituir “boa aparência” por “branco” para se obter a verdadeira significação do eufemismo. Com lei ou sem lei, a discriminação contra o negro permanece: difusa, mas ativa” .
É fato histórico inconteste que as negras e negros ao chegarem no Brasil na condição de escravizados e escravizadas tiveram expropriadas, confiscadas e negadas a sua condição humana, a sua família, sua dignidade, além de terem que testemunhar as tentativas de negação da identidade do seu povo. Foram mais de cinco milhões de seres humanos transportados por mais de seis mil quilômetros em condições subumanas nos porões de navios negreiros, chamados de tumbas porque nesta travessia muitos deixaram suas vidas entre os anos de 1525 e 1851 . A situação mais vexatória nesta época era a da mulher negra que, neste transito negreiro, sofriam abusos sexuais seja por seus pares, seja pelos membros do exército colonizador.
Neste contexto, a história destas mulheres e de seus espaços de luta e resistência para preservação da sua identidade de gênero, racial e religiosa se confundem. Foi no candomblé , nos terreiros e nos quilombos que estas lutas foram travadas.
Foi nesses espaços que os escravizados encontraram forças para resistir à desumanidade da escravidão, na qual não poucos sucumbiram. Foi por meio da resistência dessas mulheres africanas negras e escravizadas que, por meio da religião, dentro das senzalas, foram desenvolvidas estratégias de resistência e luta para preservação da cultura, história e religiosidade do povo negro traficado de diversas regiões da África. Povo negro escravizado que trouxe consigo elementos culturais e religiosos que ensejaram reações e transformações nas estruturas sociais, culturais, étnicas, econômicas e políticas do país, conformando a nossa identidade nacional ao lado da influência do colonizador europeu, mas ignorada porque se pretendeu varrer da nossa história a “mancha negra”, a exemplo do que ocorreu com o processo de branqueamento da nossa população por meio da abertura de nossas portas apenas ao imigrante branco no período pós-“abolicionista”.
Como observa Neris , citando Prandi e Bastide:
A capacidade de resistência do pouco que sobrou das culturas das nações dependia da capacidade de absorção pela cultura branca, a origem negra foi apagada ou disfarçada até meados do século XX. A religião era uma expressão de resistência que simbolizava a reconstrução de elementos familiares e societários africanos que haviam sido roubados dos povos escravizados e substituídos por padrões ibero-brasileiros (PRANDI, 1996), os locais de culto se tornavam casas de acolhimento a doentes, emancipados, prostitutas e outros sujeitos marginalizados pela sociedade, vistos como seres sem alma. As senzalas, terreiros e confrarias acabaram tendo um papel marcante na aplicação dos conhecimentos médicos tradicionais, passados através das gerações até chegarem ao Brasil, por meio da utilização de ervas, orações, entre outros. Tornou-se assim um elo de união entre as camadas sociais mais baixas que se sentiam protegidas e cuidadas nesses ambientes de um modo que não poderiam na casa dos seus senhores, onde havia a precarização da medicina ou mesmo ausência dela para os menos abastados (BASTIDE, 1989).
Assim, à hora de tratarmos das barreiras de acesso da mulher negra e afro-religiosa ao mundo do trabalho faz-se necessário identificar de que sujeito falamos e qual sua história. Falamos da mulher negra e afro-religiosa que traz consigo os signos de uma identidade herdada de suas ancestrais: mulheres negras africanas escravizadas, que, com sabedoria, migravam para o mundo material as características míticas das divindades femininas, que cultuavam e cuja sensualidade não ameaçava a sua maternidade, tanto assim que, tendo a si negado o direito de ser mãe de filhos de escravos, não sucumbiu. Ao contrário, fez desta imposição um signo de liberdade e de autonomia.
Falamos de mulheres que, sendo autônomas, sempre prescindiram da presença masculina, seja no regime poligâmico no qual viviam em terras africanas, seja como escravizadas porque, lá, no longínquo continente africano, já eram livres do jugo masculino. Não obstante, a independência em relação à figura masculina, estas mulheres não abandonavam seus companheiros à sua própria sorte e com eles compartilhavam suas lutas, seu trabalho e sua divindade. Deidades que representavam a tradição, mas, que, para ela, mulher negra escravizada, seu tempo era o presente: o tempo do aprisionamento da escravidão, mas, também, tempo de resistência e luta pela liberdade, pela preservação de sua cultura e religiosidade, de sua identidade enfim.
Mulheres que sabiam fazer prevalecer seus desejos e proteger seus filhos porque, com suave e estratégica naturalidade, se permitiam a dissimulação como instrumento de luta e defesa. Estas mulheres, que, com insustentável leveza de ser e estar, transitavam entre o mundo mítico e real como transitavam, com independência e liberdade, entre as esferas pública e privada, na sua terra natal. Como escravizadas conseguiram agregar aspectos africanos, europeus e indígenas na construção de uma identidade que tinha por marca o feminino na sociedade brasileira.
Falamos de uma mulher que, com maestria, conduzia sua vida e que fez da sua cultura e religiosidade instrumentos de resistência e de conquista de espaços para a defesa dos seus. Ontem, como hoje, esta é a mulher negra e afro-religiosa. É a partir desta realidade que examinamos a hipótese de preconceito, racismo, intolerância e discriminação no universo do trabalho vivenciada pelas mulheres negras, segundo a sua auto- identificação étnico-racial e religiosa.
A motivação deste trabalho provem de nossa indignação quanto a situação da mulher negra e afro-religiosa, cuja história, cultura e religiosidade são invisibilizadas e sua imagem é estigmatizada – como cantado e decantado no imaginário popular- como mulheres submissas, incultas, supersticiosas, trabalhadoras e cuidadoras de crianças e de seus senhores/empregadores quando, em verdade, sua história é outra: é a história de mulheres fortes, líderes e mães que, com sua sabedoria ancestral, força e independência, permearam a imagem feminina em períodos marcados por uma lógica preconceituosa, sexista e racista.
É importante salientar que, diversamente das sociedades ocidentais, na qual cabia tradicionalmente à mulher o espaço doméstico, resguardado da vida pública e voltado para a criação dos filhos e administração interna do lar, nas sociedades africanas a mulher ocupava um espaço na divisão do trabalho que lhe proporcionava independência, não obstante a prevalência do regime poligâmico. No que se refere ao mundo do trabalho – na esfera pública ou privada- dele também participava a mulher africana, que o ocupava como um espaço privilegiado de sociabilidade. Como observam Josélia Ferreira dos Reis e Rita de Cássia Santos Freitas :
O mundo do trabalho na sociedade tradicional ioruba também não era apartado das mulheres que, ocupando o espaço público com tanta habilidade quanto o doméstico e, segundo, Bernardo, muitas vezes lucravam com a produção de seu marido a ponto de “amealhar fortunas consideráveis – o que as torna, muitas vezes, mais ricas do que seus próprios maridos” (IDEM, p.34), posto que compravam dele a produção, para revender na feira e o lucro resultante desta venda ficava para a mulher. Desta forma, o espaço privilegiado da sociabilidade africana, era de domínio feminino.
O mercado, lugar de negócios, também era lugar para troca de bens materiais e simbólicos (músicas, orações, danças, receitas para curar o corpo, receitas para aconchegar os corações); (AMARAL, R., 1998). Bernardo concorda, para ela, a mulher é “mediadora, não só das trocas de bens econômicos, como também das de bens simbólicos”. Mas não se limitavam somente ao mercado e à casa. A política e a administração pública também eram espaços por onde circulavam mulheres competentes, exemplos desta ocupação foi a organização dos reinos fon e nagô-ioruba, onde acumulavam a administração do palácio real, postos de comando importantes além da fiscalização do próprio Estado. (Silveira, 2000, p.88 apud BERNARDO). As sociedades Ialodê e Gueledé eram respectivamente responsáveis pela representação feminina nos espaços políticos e simbólicos. Enquanto a primeira representava os interesses das comerciantes, a segunda se encarregava dos rituais de fecundidade e fertilidade.
Salientam as autoras citadas, que, na sociedade africana tradicional, a existência de diferenças não equivalia, necessariamente, à presença de desigualdades, da mesma forma que a relação entre gêneros não conduzia ao “aprisionamento a um determinado espaço”. Para a mulher africana, destacam, o trânsito entre o público e o privado era livre e se constituía na base de sua identidade. Esta característica, pontuam, foi reconstruída no Brasil, ainda que sob o pálio do regime de escravidão. Confira-se :
No Brasil colonial as características tradicionais da sociedade africana acabarão por influenciar e permitir o transito da mulher negra nos espaços público/privado na realidade da diáspora, que teve como duas características a criatividade e o sincretismo para resistência e reorganização. Seja como ama de leite, ama seca ou cozinheira, ela ocupará o espaço privado, não se abstendo, no entanto, de transitar pelo público como vendedora de quitutes, escrava de ganho, etc. Desta circulação livre, ainda, se beneficiam os integrantes de diversas etnias que acabam por se organizar para a compra da liberdade, movimento identificado principalmente nos espaços urbanos, como citam Amaral e Bernardo.
As autoras ressaltam que, chama a atenção o fato de que, dentre as diversas funções desempenhadas pela mulher negra no período colonial, o cuidado com o outro sempre esteve presente, “seja na alimentação para as quituteiras, seja no cuidado de crianças, no caso das amas, ou no cuidado espiritual e de saúde das mães de santo e benzedeiras, ou seja, mantém-se ainda a troca material e simbólica”, tal e como elas vivenciavam como pessoas livres na África.
O cuidado como atribuição feminina estará presente e não objetará a liberdade feminina. A independência africana estará presente mesmo quando o mais cruel dos modos de vida persistir: a escravidão. É da preservação – a duras penas – da sua cultura, que a mulher negra permitirá a si e à sua religião o reconhecimento e o espaço público . Não é à toa que, no Brasil, o cargo de Ialodê ganhará uma ressignificação como título religioso do candomblé para as mulheres de grande importância. Seu papel foi extremamente importante para a resistência: ‘(…)as ganhadeiras-escravas ou forras anônimas, à medida que circulavam pela cidade, faziam circular também notícias, informações, músicas, orações…recriando, no Brasil, o papel feminino de mediadora de bens simbólicos; porém, mais do que isso, articulando escravos e libertos da alienação promovida pelo sistema escravagista’. (BERNARDO, 2003:p.39)
Ainda segundo o escólio de Josélia Ferreira dos Reis e Rita de Cássia Santos Freitas , a relativa independência destas mulheres negras escravizadas conduz a uma singular característica de formação dos grupos familiares: a matrifocalidade, consequência do impedimento de formação de grupos coesos de escravos dado o temor dos senhores de rebeliões.
Assim, remetendo ao temor produzido ante a possibilidade da emergência dos filhos de escravos como sujeitos de direitos, Bernardo , citado por Reis e Freitas , observa que a lei do ventre livre “com o seu pecúlio, nada mais fez do que acentuar uma forma alternativa de família, que tem suas origens na diáspora e seus desdobramentos na escravidão e no pós-abolição”, de modo que, se na África, ressalta, as mulheres viviam com seus respectivos filhos em casas conjugadas à grande casa do esposo, num sistema poligâmico, no Brasil rompeu-se a relação da mulher com o homem, permanecendo a mãe com seus filhos, florescendo a matrifocalidade, cuja vivência sofre significativa diferenciação conforme se trate de mulheres negras e brancas. Para estas a família matrifocal representaria uma vivência sofrida, enquanto que para aquelas foi encarada com satisfação e autonomia.
Da conjungação da autonomia, satisfação e matrifocalidade, das quais desfrutavam as mulheres negras escravizadas, surgiram importantes personagens para a defesa da identidade feminina de matriz africana: as mães de santo, que, juntamente com suas comunidades, emergirão no cenário nacional ganhando notoriedade a partir do final do século XIX e no início do século XX, pela premente necessidade de resistir e lutar contra a violência e pelo direito de cultuar os deuses de seus antepassados. Para tanto sua maior arma era a conciliação, o acolhimento e o cuidado com o outro, características muitas vezes atribuídas ao feminino – e que não significam, necessariamente, passividade, ressaltam Reis e Freitas. Nas palavras de Amaral , citado pelas autoras:
Enfrentando violências extremas, as comunidades negras organizadas em torno das mães-de-santo (as famílias de santo) foram capazes de resistir e de preservar seus valores. Estas mulheres souberam, ainda, abrir espaço na cultura que lhes negava o direito à diferença, sem deixar de receber entre os seus quaisquer pessoas que a elas recorressem em busca de conselhos e ajuda espiritual, não discriminando, por sua vez, raça, cor, gênero, ideologia, religião ou classe social.
Neste passo convém destacar os traços distintivos específicos, àquela época, entre o ser mulher branca e o ser mulher negra. Neste período, segundo a cultura então vigente, as mulheres brancas se circunscreviam ao ambiente doméstico, sequer se lhes reconhendo a maternidade quando do anuncio do nascimento de uma criança. Estas mulheres eram anônimas ou anuladas, salvo na condição de consumidoras de produtos de baixo custo para tratar da sua saúde reprodutiva, ou melhorar o seu aspecto (caso dos cosméticos). De outra parte, sua visibilidade pública ocorria no caso do cometimento de infrações penais. Diversamente, a mulher negra, via de regra mães de santo, eram retratadas como líderes religiosas que recebiam políticos e intelectuais em seus templos. Assim, a imagem da mulher negra, líder religiosa, articulada a políticos e intelectuais, se contrapôs àquela do homem negro, retratado como “feiticeiro” ou como criminoso, o que não exclui relatos de prisões de negras por roubo, ou vítimas de agressões de agentes dos aparelhos institucionais, destacam Reis e Freitas .
Como observa Amaral , citado por Reis e Freitas , a religiosidade permeia a história das mulheres negras uma vez que “(…) a cultura afro-brasileira foi sustentada, em grande parte, pela força feminina nos terreiros e irmandades, de onde se espraiou pela sociedade, passando a constituir alguns dos mais marcantes valores da cultura nacional”.
Portanto, do que se trata aqui, é de ressaltar a importância e a influência da mulher de origem africana e afro-religiosa na construção de uma identidade de gênero, étnico-racial e religiosa, e as formas como esta presença fortaleceu as práticas religiosas e a sociabilidade de matriz africana na sociedade brasileira.
Esta situação sofreu radical transformação com o advento do processo de industrialização e modernização da sociedade, ocorrido na Década de 30. Neste período as mulheres brancas dos estratos médios e médio-alto se aliam à Igreja Católica e ingressam no mercado de trabalho; e, no rastro das ideias feministas que estavam em voga, lutam pelo sufrágio feminino. Inversamente, as mulheres negras continuam levando e lavando roupas nas fontes ou vendendo seus doces, salgados, frutas e flores pelas ruas e mercados. A década de 30 marca, assim, a emergência do movimento feminista, e também, como destacam Reis e Freitas ,
[…] a reviravolta na sociabilidade e na expressão das mulheres negras, posto que as mulheres brancas e de camadas sociais que permitiam o acesso a educação e a melhores condições de vida emergiam no cenário por via dos movimentos feministas, as mulheres negras continuavam a ocupar os papéis tradicionais que anteriormente proporcionavam uma brecha estratégica no mundo do trabalho e na sociabilidade. Não é difícil concluir que as condições para ocupação no mundo do trabalho de lugares mais qualificados se tornassem favoráveis para as mulheres brancas, ainda que com as restrições conhecidas pelo recorte de gênero que permeia os estudos sobre trabalho.
No Centenário da Abolição Abdias do Nascimento fez a seguinte avaliação crítica, que, cremos, ainda permanece atual, embora seja constrangedor reconhecer a triste realidade que vivencia a população negra, em especial as mulheres negras e afro-religiosas.
[…]como esquecer que a República, logo após a abolição, cassou ao ex-escravo seu direito de votar, inscrevendo na Constituição que só aos alfabetizados se concedia a prerrogativa desse direito cívico? Como esquecer que, após nosso banimento do trabalho livre e assalariado, o código penal de 1890 veio definir o delito de vadiagem para aqueles que não tinham trabalho, como mais uma forma de manter o negro à mercê do arbítrio e da violência policiais? Ainda mais, definiram como crime a capoeira, a própria expressão cultural africana. Reprimiram com toda a violência do estado policial as religiões afro-brasileiras, cujos terreiros se viram duramente invadidos, os fiéis e os sacerdotes presos, pelo crime de praticar sua fé religiosa. Temos vivido num estado de terror: desde 1890, o negro vem sendo o preso político mais ignorado desse País[…]
Passados tantos anos da chama “abolição” da escravidão, fato é que, os jovens negros são as maiores vítimas de homicídios nos quais corpos negros matam corpos negros, as mulheres negras são as maiores vítimas de feminicídio – mais uma vez corpos negros destruindo corpos negros-; as mulheres negras ocupam os postos de trabalho mais precarizados com percepção de salários inferiores ao homem ou mulher não negros, embora muitas vezes os superem em nível de escolaridade e, as religiões de matriz africana, em um triste e preocupante retrocesso histórico, estão sendo objeto de perseguição, inclusive por estamentos do Estado, que, tem utilizado de forma arbitrária seu poder de polícia, invadem os terreiros e apreendem objetos de culto, sem falar da ação de criminosos que, em nome de um “Cristo”, que em nada e por nada reflete as lições do verdadeiro Messias, perseguem os religiosos desalojando-os de seus territórios de identidade com violência e grave ameaça: no caso a pena capital…
Dada a sua carga que traz consigo pedimos vênia para trazer uma reflexão de Sueli Carneiro sobre a utopia perseguida pela povo negro para alcançar uma igualdade de direitos para além do gênero, raça, cor, etnia, ou qualquer outro fator discriminatório fundados nas reminiscências da escravidão, mas ainda atuais: a objetificação e demonialização de sua história, cultura e religiosidade. Objetificação, porque aqui chegaram como um nada e, nada, não possui direitos, não possui história, não possui cultura. Demonialização, porque suas manifestações de cultura e religiosidade não se enquadravam no modelo eurocêntrico da cristandade, a quem pertence a construção do mito do satânico, do demoníaco a partir da figura do “anjo caído”. A afetação do negro à figura do demônio também encontrou reforço no livro bíblico do Gênesis que considera os negros descendentes de Cam, o filho de Noé amaldiçoado por Deus. Neste caso, como ressalta Giralda Seyferth “a maldição bíblica é transformada em maldição de cor da pele — e a possibilidade de branqueamento em três gerações[…] redime a negra no fenótipo ariano do seu descendente!
Assim, a utopia desde sempre perseguida pela população negra segundo Sueli Carneiro
[…]consiste em buscar um atalho entre uma negritude redutora da dimensão humana e a universalidade ocidental hegemônica que anula a diversidade. Ser negro sem ser somente negro, ser mulher sem ser somente mulher, ser mulher negra sem ser somente mulher negra. Alcançar a igualdade de direitos é converter-se em um ser humano pleno e cheio de possibilidades e oportunidades para além de sua condição de raça e de gênero. Esse é o sentido final dessa luta .
Neste passo, e para compreender a realidade vivenciada pelas mulheres negras e afro-religiosas faz-se necessário a abertura de um parágrafo para referir ao passado e à realidade atual que elas vivenciam em razão de sua orientação religiosa. Estes seres humanos, independente do seu gênero, aqui chegaram com seus corpos negros escravizados e denegridos em sua condição humana e eram obrigados à conversão pelo batismo à religião cristã, oportunidade na qual também se lhes eram atribuídos nomes cristãos, com o que pretendia-se romper toda a sua ligação com sua ancestralidade, cultura, história, e religiosidade, que não convertia para a ideia de dois mundos: o céu e a terra, mas, de um único mundo, coeso e harmônico criado e regido por um único Deus: o mundo da natureza.
Portanto, as religiões de matriz africana são monoteístas e, como as demais professam a esta crença, se assenta na ideia de um Deus único, Olodumare. As religiões de matriz africana não acreditam na existência de uma força maligna que se opõe à uma força benigna e que nega a ideia de Deus e do sacrifício de seu único filho: Jesus. Não obstante, por ignorância e desconhecimento, o senhor de escravos – como hoje os neopentecostais o fazem- lhes incutia a ideia cristã de pecado a ser redimido.
No caso dos senhores escravocratas apelava-se pela redenção pelo trabalho forçado. Neste aspecto Abdias Nascimento , na sua célebre obra “O Genocídio do Negro Brasileiro: Processo de um Racismo Mascarado”, ressalta a importância do papel exercido pela Igreja Católica como o “principal ideólogo e pedra angular para a instituição da escravidão em toda a sua brutalidade”. Destaca o autor o papel desempenhado por seus missionários na colonização da África que “não se satisfez com a conversão dos “infiéis”, mas prosseguiu, efetivo e entusiástico, dando apoio até mesmo à crueldade, ao terror do desumano tráfico negreiro”. À continuação cita uma pregação aos escravos do padre jesuíta Antônio Vieira , tido e havido como exemplo de piedade e de caridade na Bahia de 1633:
Escravos, estais sujeitos e obedientes em tudo a vossos senhores, não só aos bons e modestos, senão também aos maus e injustos […] porque nesse estado em que Deus vos pôs, é a vossa vocação semelhante à de seu Filho, o qual padeceu por nós, deixando-vos o exemplo que vos haveis de imitar. […] Deveis dar infinitas graças a Deus por vos ter dado conhecimento de si, e por vos ter tirado de vossas terras, onde vossos pais e vós vivíeis como gentios, e vos ter trazido a esta, onde, instruídos na fé, como cristãos e vos salveis.
Em outro Sermão, também citado por Abdias, o Padre Antonio Vieira verbera que “Um etíope que se lava nas águas do Zaire, fica limpo, mas não fica branco: porém na do batismo, sim, uma coisa e outra”. Quanto a esta observação Abdias observa que, segundo a oratória do Padre Antonio Vieira: “[…] as águas do batismo cristão possuíam as diversas virtudes justificativas do escravizamento do africano e, mais, ainda, tinha o poder mágico de erradicar a própria raça- um desraçado limpo e branco!”
Observa Abdias Nascimento que se o desejo maior dos cristãos era a salvação pela imitação de Cristo- caminho direto para o céu- o ramo protestante teria atuado na mesma direção traduzindo-se em mera ideologia à serviço do opressor. Neste passo o autor evoca as palavras proferidas àquela época pelo Pastor inglês Morgan Goldwin :
O Cristianismo estabeleceu a autoridade dos senhores sobre seus servos e escravos em tão grande medida como a que os próprios senhores poderiam havê-la prescrito[…]exigindo a mais estrita fidelidade[…] exigindo que se os sirva com o coração puro como se servissem a Deus e não aos homens […] E está tão longe de fomentar a resistência que não permite aos escravos a liberdade de contradizer ou a de replicar de forma indevida a seus senhores. E lhes promete a recompensa futura no céu, pelos leais serviços qu.e tenham prestado na terra.
Atualmente este processo de conversão e redenção, a partir da ideia de pecado e de luta contra o demônio, é reeditado pela igrejas de denominação neopentecostal – diríamos nós de forma mais perversa- , como se constata do estudo realizado por Vagner Gonçalves da Silva , professor do departamento de antropologia da USP, que classifica estas ações segundo os seguintes critérios: 1. Ataques feitos no âmbito dos cultos das igrejas neopentecostais e em seus meios de divulgação e proselitismo, que têm como ponto de partida uma teologia assentada na idéia de que a causa de grande parte dos males deste mundo pode ser atribuída à presença do demônio, que geralmente é associado aos deuses de outras denominações religiosas. Segundo esta visão cabe aos fiéis dar prosseguimento à obra de combate a esses demônios iniciada por Jesus Cristo: “Para isto se manifestou o Filho de Deus: para destruir as obras do diabo” (1 João 3:8).; 2. Agressões físicas in loco contra terreiros e seus membros, que, insulados pela crença antes referida, invadem terreiros visando destruir altares, quebrar imagens e “exorcizar” seus freqüentadores, o que geralmente termina em agressões físicas; 3. Ataques às cerimônias religiosas afro-brasileiras realizadas em locais públicos ou aos símbolos destas religiões existentes em tais espaços, quando os adeptos ficam mais expostos a esses ataques, que englobam desde a simples distribuição aos presentes de panfletos com propaganda contra esses cultos até a tentativa de interrupção forçada dos rituais, com uso de violência física, inclusive; 4. Ataques a outros símbolos da herança africana no Brasil que tenham alguma relação com as religiões afro-brasileiras, são estigmatizados e combatidos. Outra face da desqualificação desses símbolos é paradoxalmente, a sua “incorporação” nas práticas evangélicas, porém dissociando-os de sua relação com as religiões afro-brasileiras. Neste contexto, como observa o autor, surge a capoeira de Cristo, evangélica ou gospel, em cujas letras não há referências aos orixás ou aos santos católicos; 5. Ataques decorrentes das alianças entre igrejas e políticos evangélicos com a crescente eleição de candidatos evangélicos ou de aliados dessas igrejas. Neste caso, a batalha contra outras denominações religiosas se reflete ou se ampara no campo da representação política, de modo que, políticos evangélicos, aproveitando-se do poder decorrente desta investidura, articulam ações antagônicas ao desenvolvimento das religiões afro-brasileiras; e, finalmente, 6. As reações públicas (políticas e judiciais) dos adeptos das religiões afro-brasileiras, que ainda estão muito longe de representar um movimento articulado que faça frente à organização dos evangélicos neopentecostais, que cada vez mais se empenham em ocupar espaços estratégicos nos meios de comunicação e nos poderes Legislativo e Executivo, mas, também, no poder Judiciário, no Ministério Público e na Defensoria Pública.
Ainda é Vagner Gonçalves da Silva quem destaca como principal característica do neopentecostalismo, derivada da sua crença no sentido de que é imperativo eliminar a presença do demônio do mundo: “classificar as outras denominações religiosas como pouco engajadas nessa batalha” ou “como espaços privilegiados da ação dos demônios, os quais se “disfarçariam” em divindades cultuadas nesses sistemas”, com destaque para as religiões de matriz africana, cujos deuses são vistos como manifestações dos demônios.
Outra face desse processo que é destacada pelo autor “é a ‘incorporação’ da liturgia afro-brasileira nas práticas neopentecostais de algumas igrejas”.
Desta herança e situação atual de perseguição aos afro-religiosos tem-se que as mulheres negras e afro-religiosas são alvos constantes de preconceito, racismo, intolerância e discriminação de gênero – como toda e qualquer mulher- e étnico-religiosa.
Assim, o tema da igualdade no trabalho na perspectiva das relações de gênero, étnico-raciais e religiosas no Bra¬sil tem relevância conjuntural e histórica, uma vez que o trabalho foi ini¬cialmente utilizado no país como ferramenta de redenção, opressão e aprisionamento da população negra. Nesse sentido, poder ressignificá-lo como catalisador da igualdade é um passo rele¬vante para as relações étnico-raciais e religiosas no país.
Desde esta perspectiva, o conhecimento sobre as formas como as desigualdades de gênero e étnico-raciais-religiosas se produzem e reproduzem é condição para que elas possam ser enfrentadas, razão pela qual, para compreender a realidade da mulher negra no universo do trabalho é preciso conhecê-la a partir de quem as vivi, porque só elas podem falar de suas dores e cicatrizes, suas angústias, tristezas, decepções…. A nós, que ouvimos, resta exercitar a capacidade da empatia, de se colocar no lugar do outro para aferir o que sentiríamos se estivéssemos naquele lugar de vida. No caso, no lugar da mulher negra e afro-religiosa que, ontem, como hoje, no seu cotidiano, enfrenta todas as formas de preconceito, racismo, intolerância e discriminação de gênero, cor, raça, etnia e orientação religiosa, ainda que possua escolaridade, capacidade e qualificação técnica para ocupar um posto de trabalho e, que, pelo só fato de sua identidade, é preterida por alguém que seja não-negra, não-afro-religiosa.
Preconceito, racismo, intolerância e discriminação que se manifestam sob as mais variadas formas de violência física e/ou moral e que se estendem aos seus filhos.
Neste momento é imperativo reconhecer e afirmar a intrínseca relação entre desigualdades de gênero, étnico-raciais e religiosas no contexto da educação superior, do mercado de trabalho e renda, da pobreza, do acesso a bens e serviços públicos de qualidade, da exclusão digital e da violência, as quais, à sua vez, se articulam com a situação de classe, geracional, regional, e com a dinâmica temporal destes fenômenos na realidade brasileira. Reconhecendo, de plano, esta articulação, será possível construir mecanismos que permitam a conformação desta perversa distribuição desigual socioeconômica, cultural e política, o que exige um efetivo compromisso com o rompimento das desigualdades étnico-raciais e de gênero, e com a desconstrução de papéis pré-concebidos e estereótipos, por intermédio da ação formativa, educativa e afirmativa, que possuem caráter reparador de lesões perpetradas a séculos.
Dito isto, imagine a situação de ser apedrejada por intolerância religiosa – como ocorreu com uma menina de 11 anos – Kailane Campos-, no Subúrbio do Rio de Janeiro. Na oportunidade Kailane declarou que esta não foi sua maior cicatriz, mas, sim, o medo de morrer. “Achei que ia morrer. Eu sei que vai ser difícil. Toda vez que eu fecho o olho eu vejo tudo de novo. Isso vai ser difícil de tirar da memória” . Seu pecado, seu crime, foi estar vestida de branco e carregar contas no pescoço, que, para o candomblecista, não são apenas símbolos de proteção, são manifestações de atributos próprios, características individuais que emanam para além delas, mas, por meio delas, se expressam.
Imagine perder uma oportunidade de trabalho pelo só fato de sua cor de pele e/ou sua religião; Imagine não ser atendida por um médico pelo só fato de sua cor e/ou religiosidade; Imagine ser agredida em um transporte público pelo só fato de usar indumentárias próprias de sua religião; Imagine-se como mãe/pai vendo seu filho ou filha sofrer diuturnamente bulling em razão de sua cor da pele e/ou religião, de seu cabelo; Imagine não ter sossego quando seu filho(a) negro(a) sai às ruas com o risco de não voltar porque vitimado por uma desastrosa ação policial que lhe tolhe a tenra vida; Imagine ser preterida em uma promoção na empresa em razão da sua cor de pele e/ou religiosidade; Imgine perceber salário inferior ao pago a uma pessoa não-branca, seja ela homem ou mulher; Imagine seu empregador lhe sugerir alisar seus cabelos ou cortá-lo como condição para permanência no emprego, ou, ainda, sofrer pressões para deixar o emprego por meio de imputações de fatos falsos, tais como a responsabilização pelo sumiço de produtos de trabalho que nunca sumiram…
Imagine ser submetida(o) a tantas outras formas de violação de direitos com as quais diuturnamente vivem e convivem as mulheres negras, notadamente a exigência de, a cada fração de segundo de sua vida, ter que lutar contra as mais variadas formas de preconceito, racismo, intolerância e discriminação e de ter que se afirmar e reafirmar como um sujeito de direitos que, como tal, merece respeito e tratamento aos seus iguais na sua condição humana…Imagine não ter paz, estar sempre em alerta, porque não sabe de onde virá o próximo ato de preconceito, racismo, intolerância e discriminação…Imagine viver em uma pseudo-democracia racial e ser detentor, por força da natureza, da cor “negra”, vocábulo que a língua portuguesa adjetiva com sentidos negativos e estigmatizantes, e que o racismo associa à pessoa negra…
Consoante Abdias Nascimento , “na mais proeminentemente autorizada tradução inglês-português, o New Appleton Dictionary of the English and Portuguese Language” “negro” apresenta as seguintes definições:
Black(black).I.s. preto, negro (cor, raça); mancha; luto.-in bl.(com.) com saldo credor do lado do haver, sem dívidas. II.a.,preto; negro; escuro; sombrio; lúgubre; tétrico; tenebroso; sinistro; mau; perverso; hostil; calamitoso; desastroso; mortal; maligno. III.vt e vi., enegrecer; pintar de preto; engraxar (sapato, etc.) de preto; desenhar em negro; manchar; difamar[…]
Imagine ser visto como exteriorização destes sentidos e significados e levar consigo esta carga negativa atribuída à palavra “negro”, por aqueles beneficiários do mito da “democracia racial”, uma democracia cuja artificiosidade, no dizer de Abdias Nascimento :
[…] se expõe para quem quiser ver; só um dos elementos que constituíram detém todo o poder em todos os níveis político-econômico-sociais: o branco. Os brancos controlam os meios de disseminar informações; o aparelho educacional; ele formulam os conceitos, as armas e os valores do país. Não está patente que neste exclusivismo se radica o domínio quase absoluto desfrutado por algo tão falso quanto essa espécie de “democracia racial”? Os efeitos negativos desse exclusivismo se expressam de formas várias, inclusive no veículo condutor de uma cultura e sua cosmovisão: a língua.
Agregue-se a tudo o que até aqui foi dito a necessidade de alguém negar a sua identidade de cor e religiosidade para se incluir no universo que lhe exclui por força do preconceito, do racismo, da intolerância e da discriminação de gênero, raça, cor, etnia, religiosidade. Isto é um fato que foi identificado em um censo do IBGE, e que foi objeto de análise pelos repórteres do Estado de São Paulo, Edison Veiga e Rodrigo Burgarelli, em 7 de março de 2017 , cuja reportagem recebeu o seguinte título: ‘Faltam’ 2,5 milhões de mulheres pretas e pardas no País, segundo IBGE . Intrigados com referidos dados estatísticos os jornalistas empreenderam uma pesquisa para tentar compreender o fenômeno destacando como premissa que, historicamente, as mulheres declaram ser mais brancas que o sexo oposto, diferença que se manteve mesmo durante o expressivo crescimento do número de brasileiros que afirmavam serem pardos ou pretos na última década: a proporção cresceu de 45% para 55% de 2001 para 2015. Na PNAD referida na reportagem, 53% das mulheres se declaram não brancas, ante quase 56% dos homens. Noticia, ainda, a reportagem, que, para o então pesquisador da Coordenação de População e Indicadores Sociais do IBGE Leonardo Athias, “não há pesquisa suficiente no Brasil para conseguir entender exatamente porque as mulheres parecem ter tendência de se imaginarem, na média, mais brancas do que são”.
Aponta a reportagem que uma das causas para este fenômeno seria a questão cultural posto que, nos Estados do Norte e do Nordeste como Rondônia, Piauí, Roraima e Bahia, a proporção de brancos, pretos e pardos é praticamente igual, diversamente do que ocorre em Estados do Sul e do Sudeste, como Santa Catarina, Paraná e Rio. Outro fator a ser considerado na hipótese, salienta a reportagem, é a escolaridade. Quanto mais anos de estudo a mulher possui, maior a chance de ela se declarar não branca. A maior diferença proporcional entre mulheres e homens que se declaram brancos está no grupo que não concluiu o ensino fundamental: as brancas têm 3,2 pontos porcentuais a mais. Entre a população com curso superior completo, o gráfico se inverte – 26% das mulheres declararam ser negras ou pardas, número superior aos 23% referente aos homens dessa escolaridade.
Para compreender o processo de transformação na percepção da própria raça realizou-se processo de escuta com mulheres que viveram essas mudanças ou eram símbolos para esse grupo. Perguntadas sobre as razões que explicariam a diferença entre homens e mulheres na hora de declarar sua raça, a resposta foi praticamente unânime, destaca a reportagem: “É difícil para a mulher assumir-se preta ou parda. Há um discurso cultural dominante, uma construção do padrão de beleza com base em um embranquecimento”, avaliou a jornalista consultada pela reportagem, Viviane Duarte, criadora do projeto Plano Feminino.
A reportagem é finalizada com avaliações da advogada Mayara Souza, fundadora do grupo Negras Empoderadas, e da atriz Taís Araújo. Afirma Mayara que “A mulher negra está na base da pirâmide social, por ser mulher e por ser negra. É natural que ela tente se afastar dessa imagem” […] ; e, ao seu turno, Taís Araújo pontua: “Ser mulher negra neste País é muito difícil. Entendo profundamente as pessoas que tentam se aproximar de uma realidade que não é delas”. Ou seja, trata-se de uma triste rota de fuga dos estigmas que recaem sobre a mulher negra. Uma tentativa de negar aquilo que se lhe imputa como características negativas.
A partir deste contexto tentemos refletir sobre as seguintes narrativas de preconceito, racismo, intolerância e discriminação nas relações de trabalho e como elas podem afetar a saúde da mulher negra, sua qualidade de vida, sua autoestima, sua dignidade, enfim.
Primeira narrativa: Larissa Neves, estudante de psicologia, quando tinha 18 anos conseguiu emprego como recepcionista em uma empresa multinacional, mas acabou tendo que sair por não suportar os ataques e piadas preconceituosas por ser negra. Relata Larissa que “Na época eu estava começando meu processo de transição, tinha parado de relaxar o cabelo e cortei ele bem curtinho. Quando ele começou a crescer começaram a dizer que minha aparência não era compatível com o trabalho, me questionaram se eu não iria relaxar o cabelo. Até que um dia eu estava na sala e começaram, além de fazer piada, a colocar objetos do escritório na minha cabeça” .
Segunda narrativa, dentre muitas outras…
História 1: Meu primeiro emprego depois de me tornar uma mãe solteira
Eu lembro bem dessa experiência, pra ser bem sincera nunca consigo esquecer. Eu tinha 24 anos, um filho de três meses para sustentar e nenhuma grana no banco. Tinha saído de uma experiência de trabalho precário antes da gravidez e pedia a todos os santos por um emprego. Quando esse emprego apareceu e eu agradeci aos céus e fui com toda a minha dedicação trabalhar agradecida e pela certeza de que agora eu ia poder cuidar e suprir toda as necessidades do meu filho. Sou pedagoga e fui contratada por uma empresa relativamente nova, para elaborar projetos pedagógicos; no escritório todas as pessoas eram brancas, eu ia ser a primeira negra por ali; No final de uma agitada primeira semana de trabalho (duas vezes me ligaram propondo que eu chegasse mais cedo pois havia muito que escrever) vivi uma das mais dolorosas experiências da minha vida: Uma das sócias proprietárias me chama para conversar: tece elogios a minha prática, que minha escrita era muito boa, que eu era muito educada e tinha maneiras excelentes ao telefone (?!) mas ela precisava fazer uma observação: eu tinha um cheiro que incomodava as pessoas, que algumas pessoas já tinham pedido sua intervenção…me dizia que sabia que era uma situação constrangedora; Eu me lembro de ficar ali, sem palavras, prendendo o choro, mas vinha mais: ela me diz que está chateada com a situação, mas eu precisava entender que tentavam manter o escritório num nível muito alto, pois recebiam muitas pessoas muito importantes, mas ela gostava muito do meu trabalho, por isso, me informa, ela decidiu entender que as vezes, algumas pessoas tem um cheiro muito forte e me oferece um dos seus desodorantes. Eu lembro muito bem da minha sensação, sentia uma vergonha, os olhos ardendo, das lágrimas que eu tentava reprimir, a voz não saia… Me senti tão humilhada; na volta pra casa arrasada, a sensação de vergonha e de estar inadequada me seguindo a cada passo, a vontade de não voltar ao trabalho no outro dia… Mas desistir não era uma opção, tinha um filho pra criar e alimentar, não podia abrir mão do salário. E assim engoli as lágrimas e voltei ao trabalho às 7h da manhã seguinte. Depois de algumas semanas, toda a equipe viajou e eu fiquei sozinha no escritório, nessa tarde, por volta das 14h um dos sócios chega e precisa resolver muitos assuntos de pagamento, e ele me perguntou se eu podia ir ao banco descontar um cheque. O banco ficava a uns 10 minutos de caminhada do escritório, fui, com uma sensação de inquietude, porque eu estava fazendo aquela tarefa? Eu havia sido contratada para escrever projetos, será que ele pediria isso à coordenadora branca caso ela estivesse sozinha no escritório? Fui ao banco, enfrentei uma fila enorme e saquei o dinheiro. Nova caminhada até o escritório. Entreguei o dinheiro e voltei a minha sala para trabalhar. Um minuto depois o sócio chega a minha sala, irado, diz que está faltando dinheiro. Me pergunta se eu não vi. Eu disse que não, ele me diz que quer o dinheiro completo, e decide ir comigo até o banco para pedir que o atendente do caixa lhe entregue a diferença. Vou com ele. Na rua ele vai irritado, reclamando. Ao chegar ao banco, informo ao atendente do caixa o que aconteceu, ele me diz que só pode me entregar a diferença de valor no final do dia, quando conferir seu caixa e observar que está sobrando. Informo isso ao chefe, que decide voltar ao escritório e me deixa no banco esperando. E eu esperei, esperei por muito tempo, por horas. Até o banco fechar, até que o banco fechou e não havia quase ninguém lá dentro. Um gerente se aproxima e ao me ver ali em pé perto do caixa, pergunta o que estava havendo, diante da explicação, ele pergunta quanto é que está faltando. Eu informo, ele se espanta, puxa sua carteira, tira 10 reais e me entrega. Fico mais uma vez paralisada. Uma vergonha, me sentindo tão humilhada. Pego seu dinheiro e volto ao escritório. Já era noite. Entrego o dinheiro e aviso que se não houver mais nada, vou organizar minhas coisas para ir pra casa. Quando chego ao ponto de ônibus, meu celular toca. O chefe pede que eu volte ao escritório. Chegando lá em cima, vou a sua sala e ele está irado, me perguntando pelo dinheiro. Onde foi que guardei? Eu digo que entreguei a ele e que vi quando ele colocou no bolso da camisa. Ele apalpa o bolso, deve ter sentido o dinheiro, porque olha para mim e somente diz seco: desculpe, lembrei. Eu desço mais uma vez, vou chorando o caminho inteiro, agora não tinha nenhuma duvida, ele achava que eu tinha roubado o dinheiro. Ele achava que eu, a única pessoa negra do escritório, tentei por duas vezes naquele dia roubar seu dinheiro. Fui durante todo o caminho chorando, perto de casa, enxugo meu rosto, quando abro o portão, minha irmã vem sorridente me entregar meu bebê; às pressas termino de me recompor. É dia 05 de agosto: estavam me esperando para comemorar meu aniversário.
As terceira e quarta narrativas foram colhidas no trabalho de Júlia Simões Neris que tem como título “Intolerância Religiosa nas relações de trabalho: proteção ao povo de Santo”, única bibliografia encontrada sobre a intolerância religiosa nas relações de trabalho contra a mulher adepta de religião de matriz africana, o que comprova a invisibilidade desta problemática, tributária do medo das vítimas da banalização da violência, que, de fato e de direito, já é vivenciada com o acirramento dos discursos de ódio e das perseguições por eles sofridas por grupos evangélicos fundamentalistas e sectários. A esta circunstância – que também justifica a ausência de estatísticas- se soma a postura dos candomblecistas no sentido de preferirem não buscar o auxílio do aparato do Estado para não expor a sua religião por medo de represália, notadamente o assédio, mas, também, por nele não acreditar dada a falta de respostas institucionais em relação as graves violações de direitos sofridas diuturnamente. Como observa a autora :
Essas pessoas compõem uma zona cinzenta na sociedade, a qual torna senso comum o conhecimento acerca da existência do preconceito, mas não se dimensiona os danos provocados tanto à coletividade quanto ao indivíduo gerados pela intolerância. Quando analisamos a ocorrência de abuso de direitos por parte de empregadores ou colegas de trabalho contra candomblecistas, o silêncio acerca do preconceito pode surgir por diversos motivos segundo os entrevistados: medo do desemprego, medo de agravamento da situação de assédio.
Vejamos as narrativas:
Terceira narrativa:
No processo número 01786-2013-016-10-00-6, TRT-10, julgado em primeira instância pela Magistrada Luiza Fausto Marinho de Medeiros e em sede de recurso teve como relator Maria Regina Machado Guimarães, é possível analisar com maior profundidade a ocorrência, no caso concreto, desse tipo de conflito entre o poder diretivo do empregador e a liberdade de crença do empregado. Segundo consta nos autos, a Autora foi vítima de despedida sem justa causa motivada por circunstâncias discriminatórias de cunho religioso, dado o fato de a ela terem sido atribuído os caracteres de “Macumbeira” e “Mão de Santo” por colega de profissão (coordenadora do colégio o qual a Autora era professora). A partir disso, foi vítima de constrangimento pelos demais colegas. A Autora sustenta ainda, afirmação reiterada por testemunhas, que foi questionada pela empregadora sobre a verdade dos boatos acerca de suas práticas religiosas e, mediante confirmação, seria despedida.
Quarta narrativa
Gilmara Santos, professora de filosofia de escola particular em Salvador-Ba, na constância do contrato de emprego, era eventualmente vítima de comentários de conotação depreciativa como “Macumbeira” e “Mulher do torço” por parte de colegas de trabalho e estudantes. Em dado momento, isso chegou a ser suscitado por alguns colegas com caráter vexatório em reuniões de professores, em seu período de iniciação no Candomblé, no qual as vestes características da religião eram mais expressivas. A partir de então, Gilmara passou a ter de se posicionar constantemente em face do preconceito dentro da escola, trazendo para a sala de aula discussões sobre religiosidade e tolerância. Além disso, houve casos de alguns pais tirarem as crianças da escola devido à presença da educadora, pois, nas palavras dela, alegavam que a diretora estava “colocando gente que tem parte com o diabo para dar aula” e não manteriam as crianças na escola se Gilmara continuasse a ministrar aulas na instituição. A resposta da escola foi não permitir o preconceito, perpetuando o contrato de emprego de Gilmara e lhe dando discricionariedade para trabalhar o tema religiosidade dentro da disciplina por ela ministrada. Ela relata ainda que a escola tinha inúmeros estudantes candomblecistas que não se apresentavam enquanto tal, filhos de babalorixás inclusive, pois não se sentiam protegidos ou identificados. A partir do momento que ela começou a se reafirmar enquanto mulher negra e candomblecista, essas crianças encontraram espaço para manifestar seu credo sem vergonha ou medo.
Porque é assim, para enfrentar a questão relativa às barreiras de acesso da mulher negra e afro-religiosa no mundo do trabalho, é necessário fixar uma premissa necessária, a saber: a questão do gênero é uma variável teórica que não pode ser alijada de outros eixos de opressão – raça, cor, etnia, orientação sexual, identidade de gênero e orientação religiosa- , portanto, não admite uma única forma de enfrentamento, tão pouco que se olvide do fato de que vivemos em uma sociedade multirracial, pluricultural e racista. Como salienta Sueli Carneiro : “A origem branca e ocidental do feminismo estabeleceu sua hegemonia na equação das diferenças de gênero e tem determinado que as mulheres não brancas e pobres, de todas as partes do mundo, lutem para integrar em seu ideário as especificidades raciais, étnicas, culturais, religiosas e de classe social”.
Portanto, para que possua utilidade prática o enfrentamento da questão objeto deste estudo é necessário considerar que à variável gênero outras devem ser agregadas outras tão estigmatizantes como o gênero: raça, cor, etnia, orientação sexual, identidade de gênero e religião. Isto porque, a mulher negra, ademais de enfrentar os agravos decorrentes do fato de ser mulher, enfrenta outros embates que não se restringem ao enfrentamento da hegemonia masculina, mas, também, de um sistema de privilégios para a mulher branca e de formação eurocristã, que a ela não são extensíveis por uma série de fatores históricos: a escravidão negra no Brasil e seus efeitos deletérios para a construção de uma cidadania; sócio-econômicos, a exclusão social e produtiva decorrente da falta de acesso a bens e serviços que lhes assegure condições de vida digna; culturais, marcado pela cultura cristã e pelo eurocentrismo, que nega a identidade da cultura negra herdada dos nossos ancestrais africanos escravizados pelo simples fato que aqui chegaram como objetos, portanto tidos como destituídos de cultura, história, tradição, religiosidade, afetos e emoções; e políticos, a falta de representatividade, que conduz à falta de legitimação dos seus direitos e o cerceio de garantia e de direitos fundamentais, e culturais.
Desde esta perspectiva tem-se que as lutas das mulheres tal e como propugnadas pelos movimentos feministas para ter caráter de universalidade exigem transversalidade e interseccionalidade para abarcar não apenas as questões de gênero, mas, também, étnico-raciais, religiosas, culturais, de orientação sexual e identidade de gênero pela elementar razão de que vivemos em uma sociedade multirracial, pluricultural e racista.
De mais a mais, não existem mulheres e “mulheres”. Existem mulheres de diversas cores e matizes etno-raciais, religiosas, culturais, de orientação sexual e identidade de gênero.
Sueli Carneiro , citando Lélia Gonzalez, faz referência a dois tipos de dificuldades para as mulheres negras, a saber: a inclinação eurocentrista do feminismo brasileiro, que omite a natureza central da questão racial nas hierarquias de gênero e universaliza a cultura ocidental para o conjunto das mulheres sem proceder à necessária mediação com base na interação entre brancos e não brancos; e – o que nos parece ser consequência do primeiro- o distanciamento da realidade vivenciada pela mulher negra e afro-religiosa, negando toda a sua história de lutas e resistências na qual estas mulheres são e foram protagonistas em razão da dinâmica de uma memória cultural ancestral que não se confunde, em nada e por nada, com o eurocentrismo que orienta este tipo feminismo.
Em sequência, com Patrícia Collins, destaca a autora citada os temas fundamentais que caracterizariam o ponto de vista feminista negro: o legado de uma história de luta, a natureza interconectada de raça, gênero e classe e o combate aos estereótipos ou “imagens de autoridade.
Confira-se:
“[…] por um lado, a inclinação eurocentrista do feminismo brasileiro constitui um eixo articulador a mais da democracia racial e do ideal de branqueamento, ao omitir o caráter central da questão da raça nas hierarquias de gênero e ao universalizar os valores de uma cultura particular (a ocidental) para o conjunto das mulheres, sem mediá-los na base da interação entre brancos e não brancos; por outro lado, revela um distanciamento da realidade vivida pela mulher negra ao negar “toda uma história feita de resistência e de lutas, em que essa mulher tem sido protagonista graças à dinâmica de uma memória cultural ancestral (que nada tem a ver com o eurocentrismo desse tipo de feminismo)”. Nesse contexto, quais seriam os novos conteúdos que as mulheres negras poderiam aportar à cena política para além do “toque de cor” nas propostas de gênero? A feminista negra norteamericana Patricia Collins argumenta que o pensamento feminista negro seria “(…) um conjunto de experiências e idéias compartilhadas por mulheres afro-americanas, que oferece um ângulo particular de visão de si, da comunidade e da sociedade… que envolve interpretações teóricas da realidade das mulheres negras por aquelas que a vivem…” A partir dessa visão, Collins elege alguns “temas fundamentais que caracterizariam o ponto de vista feminista negro”. Entre eles, se destacam: o legado de uma história de luta, a natureza interconectada de raça, gênero e classe e o combate aos estereótipos ou “imagens de autoridade”.
Assim, ainda uma vez com Sueli Carneiro , temos que um feminismo negro “tem como principal eixo articulador o racismo e seu impacto sobre as relações de gênero, uma vez que ele determina a própria hierarquia de gênero em nossas sociedades”. Neste sentido observa a autora que, para a mulher negra
[…] se impõe uma perspectiva feminista na qual o gênero seja uma variável teórica, mas como afirmam Linda Alcoff e Elizabeth Potter, que não “pode ser separada de outros eixos de opressão” e que não “é possível em uma única análise. Se o feminismo deve liberar as mulheres, deve enfrentar virtualmente todas as formas de opressão”. A partir desse ponto de vista, é possível afirmar que um feminismo negro, construído no contexto de sociedades multirraciais, pluriculturais e racistas – como são as sociedades latino-americanas – tem como principal eixo articulador o racismo e seu impacto sobre as relações de gênero, uma vez que ele determina a própria hierarquia de gênero em nossas sociedades.
Portanto, como salienta Sueli Carneiro, “a unidade na luta das mulheres em nossa sociedade não depende apenas da capacidade de superar as desigualdades geradas pela histórica hegemonia masculina”. Requer mais como pressuposto de legitimação da luta. Requer, ou melhor dito, exige
“[…] a superação de ideologias complementares desse sistema de opressão, como é o caso do racismo, que estabelece uma inferioridade social dos segmentos negros da população em geral e das mulheres negras em particular, operando como fator de divisão na luta das mulheres pelos privilégios que se instituem para as mulheres brancas”. Nessa perspectiva, a luta das mulheres negras contra a opressão de gênero e de raça vem desenhando novos contornos para a ação política feminista e anti-racista, enriquecendo tanto a discussão da questão racial, como a questão de gênero na sociedade brasileira. Esse novo olhar feminista e anti-racista, ao integrar em si tanto as tradições de luta do movimento negro como a tradição de luta do movimento de mulheres, afirma essa nova identidade política decorrente da condição específica do ser mulher negra. O atual movimento de mulheres negras, ao trazer para a cena política as contradições resultantes da articulação das variáveis de raça, classe e gênero, promove a síntese das bandeiras de luta historicamente levantadas pelos movimento negro e de mulheres do país, enegrecendo de um lado, as reivindicações das mulheres, tornando-as assim mais representativas do conjunto das mulheres brasileiras, e, por outro lado, promovendo a feminização das propostas e reivindicações do movimento negro. Enegrecer o movimento feminista brasileiro tem significado, concretamente, demarcar e instituir na agenda do movimento de mulheres o peso que a questão racial tem na configuração, por exemplo, de políticas demográficas, na caracterização da questão da violência contra a mulher pela introdução do conceito de violência racial como aspecto determinante das formas de violência sofridas por metade da população feminina do país que não é branca; introduzir a discussão sobre as doenças étnicas/raciais ou as doenças com maior incidência sobre a população negra como questões fundamentais na formulação de políticas públicas na área de saúde; instituir a crítica aos mecanismos de seleção no mercado de trabalho como a “boa aparência”, que mantém as desigualdades e os privilégios entre as mulheres brancas e negras.
Vistas as coisas a partir da perspectiva do feminismo negro, o que nos moveu neste estudo foi o desejo de enfrentar as barreiras de acesso da mulher negra e afro-religiosa no mundo do trabalho em uma perspectiva crítica que considere todos os fatores de opressão aos quais ela é submetida para lograr um emprego e, assim, de alguma forma, contribuir para retirar da invisibilidade as situações de preconceito, racismo, intolerância e discriminação por elas diuturnamente vivenciadas a partir das categorias: raça, classe, gênero, mas, também – porque fatores de agravamento do preconceito, do racismo, da intolerância e da discriminação- a cultura e religiosidade herdada dos nossos ancestrais africanos escravizados, orientação sexual e identidade de gênero. Situação tributária de um triste passado de uma sociedade colonial escravagista.
Mais uma vez invocamos as lições de Sueli Carneiro como suporte à tarefa que nos propomos e para fixar premissas que entendemos necessárias para o enfrentamento do objeto deste estudo, agora desde uma perspectiva histórica: as barreiras de acesso da mulher negra no mundo do trabalho.
No Brasil e na América Latina, a violação colonial perpetrada pelos senhores brancos contra as mulheres negras e indígenas e a miscigenação daí resultante está na origem de todas as construções de nossa identidade nacional, estruturando o decantado mito da democracia racial latino-americana, que no Brasil chegou até as últimas consequências. Essa violência sexual colonial é, também, o “cimento” de todas as hierarquias de gênero e raça presentes em nossas sociedades, configurando aquilo que Ângela Gilliam define como “a grande teoria do esperma em nossa formação nacional”, através da qual, segundo Gilliam: “O papel da mulher negra é negado na formação da cultura nacional; a desigualdade entre homens e mulheres é erotizada; e a violência sexual contra as mulheres negras foi convertida em um romance”. O que poderia ser considerado como história ou reminiscências do período colonial permanece, entretanto, vivo no imaginário social e adquire novos contornos e funções em uma ordem social supostamente democrática, que mantém intactas as relações de gênero segundo a cor ou a raça instituídas no período da escravidão. As mulheres negras tiveram uma experiência histórica diferenciada que o discurso clássico sobre a opressão da mulher não tem reconhecido, assim como não tem dado conta da diferença qualitativa que o efeito da opressão sofrida teve e ainda tem na identidade feminina das mulheres negras.
É dizer, as mulheres negras possuem desde perspectiva histórica pontos de partida absolutamente diferentes não apenas em relação aos homens – negros e não negros-, mas, também, em relação às mulheres não negras e eurocristãs, especificidades que precisam ser priorizadas, mas que não são consideradas no mundo do trabalho, via de regra. Suas barreiras de acesso ao trabalho são o preconceito, o racismo, a intolerância e a discriminação, que mais se agravam quando à condição de mulher negra se agregam as condições de afro-religiosa e integrante da comunidade LGBTQIAP+
Porque é assim, o lugar que se destina à mulher negra, ainda hoje na sociedade brasileira, pede que voltemos o olhar para o nosso passado colonial para tentar entender um presente que, no cotidiano, ainda a desvaloriza e, muitas vezes, as aloca em lugares de subalternidade e submissão. Passado colonial cuja ação escravizadora transformava homens e mulheres em mercadorias; fomentou a estigmatização da mulher negra, a partir da objetificação sexual, expondo-as, também, à violência física e sexual, ao assédio moral e ao cinismo, que ainda hoje persistem, lamentavelmente…
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