“Humanidade para os outros” ou “sou o que sou pelo que nós somos”, esse é o significado de Ubuntu, palavra africana que coloca o conceito de humanidade em sua essência e se tornou sinônimo de busca pela igualdade universal, respeito aos direitos humanos, valores e diferenças.
Melhorando a condição de vida de famílias, garantindo água potável por meio de poço artesiano, treinamentos de associativismo, cultivo e comercialização de produtos, buscando ir além da promoção do trabalho decente, garantindo também a segurança alimentar, a regularização da associação de quilombolas e a fixação na terra, através da instrumentalização de pessoas para atuar no fortalecimento de sua comunidade. Isso tudo é o que tem feito o projeto Ubuntu, criado em 2019. Desde o início do planejamento da ação, foi assegurado a todos das comunidades: o direito de participação em todas as decisões relativas à implantação do Projeto.
Moradora do Quilombo do Baião, Maryellen Crisóstomo conta como foi a chegada do projeto na comunidade.
“No primeiro momento, a equipe da qual fiz parte, visitou os quilombos e essa iniciativa do Ubuntu é diferenciada pelo fato de que não trouxe algo de novo, e sim fomentou e estruturou aquilo que as famílias já desenvolviam. Então, essa foi uma forma de estruturar aquela produção existente e dar condições de tornar uma fonte alimentar também uma fonte de renda devido à possibilidade de venda. No Quilombo do Baião, as solicitações foram da irrigação de plantio de banana e criação de frango, onde foram destinados os equipamentos necessários para estruturação do galinheiro. Os meus pais, por exemplo, foram contemplados com o ‘sisteminha’, que é uma forma de criação de peixe em tanque, e junto ao sisteminha também foi dada uma horta, para poder aproveitar a água do tanque no período de limpeza e já assim adubar a horta, que é compartilhada coletivamente com a comunidade para a colheita”.
O Ubuntu foi viabilizado pelo acordo de cooperação técnica, celebrado entre o Ministério Público do Trabalho (MPT) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT), em parceria local da Procuradoria do Trabalho no Munícipio (PTM) de Araguaína com o Núcleo de Pesquisa e Extensão em Saberes e Práticas Agroecológicas da Universidade Federal do Tocantins (NEUZA/UFT) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT) Araguaia-Tocantins. Hoje, o Ubuntu faz parte do Àwúre, uma iniciativa do MPT, OIT e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), que está presente em 6 estados brasileiros e atende diretamente mais de 60 mil pessoas de comunidades tradicionais quilombolas, pessoas de terreiro de religiões de matriz africana, ribeirinhos e indígenas.
No Ubuntu são atendidas cerca de 100 famílias do Quilombo do Grotão, São Joaquim, Lajeado, Lajinha, Baião, Carrapiché, Prachata, Ciriaco e Ilha de São Vicente, todos no Estado do Tocantins.
A comunidade remanescente de quilombo do Grotão situa-se a 82 quilômetros da sede urbana de Filadélfia (TO). Anteriormente, a comunidade era vista numa situação de vulnerabilidade tanto alimentar como vulnerabilidade socioeconômica, um dos principais problemas presentes era a escassez das águas na região e isso estava fazendo com que muitas famílias saíssem do território para irem morar em periferias de pequenas cidades, vivendo então à margem da sociedade e muitas vezes também caindo no ciclo do trabalho escravo contemporâneo.
Isso tudo começou a chamar a atenção da Comissão Pastoral da Terra (CPT), foi então que os agentes começaram a refletir sobre o problema. Nos anos de 2017 e 2018 foi realizado um diagnóstico na comunidade para levantar problemas, ameaças e potencialidades que evidenciou que a farinha de mandioca para eles era muito importante, e que uma das coisas que aquelas famílias precisavam muito era a geração de renda.
O diagnóstico foi apresentado para o Ministério Público do Trabalho (MPT), desta maneira se deu o início de todo o processo de cadeias produtivas que se transformou no Ubuntu.
A procuradora do Trabalho do MPT do Tocantins Cecília Santos fala da importância do Ubuntu para as comunidades tradicionais e o resultado que já se obteve com o projeto implantado no estado.
“Os quilombolas não têm garantia dos territórios, então quando há um projeto desse tipo, é fortalecida a permanência nesses territórios, pois além de ser um projeto de soberania alimentar, é o Ministério Público, a OIT, a Organização das Nações Unidas (ONU) entrando em parceria com essas comunidades, então fica diferente para o Estado. É o Ministério Público garantindo aquilo que foi incumbido constitucionalmente de garantir: a proteção das comunidades tradicionais e a efetivação da Convenção 169 da OIT. No desdobramento disso, é que uma vez que as comunidades tradicionais estão ativadas em seus próprios territórios com soberania, elas ficam menos vulneráveis a serem angariadas para o trabalho escravo. As pessoas que são cooptadas para o trabalho escravo hoje no Brasil são aqueles trabalhadores do campo mais vulneráveis que não conseguem sobreviver no seu próprio território ou não tem mais território para explorar”, disse Cecília.
“As famílias começaram a se alimentar melhor, a geração de renda começou a surgir e a partir disso outras famílias que estavam fora, vivendo em bastante vulnerabilidade, voltaram para comunidade. A importância do Ubuntu é justamente colaborar com a resistência das famílias no território, uma vez que o território é sempre ameaçado de invasão, de grilagem, de exploração e que muitas vezes as famílias não têm condições de resistir, porque não tem como se alimentar, não tem como viver na terra e isso o Ubuntu ocasionou um fortalecimento dessa resistência”, comentou o agente da CPT, Felipe Oliveira, que também pontuou as mudanças que ocorreram. “As mudanças que podemos citar é o aumento da renda, aumento das famílias dentro da comunidade, a mudança na autoestima das pessoas assistidas, pois antes elas tinham muito medo e não conseguiam desenvolver algumas outras tarefas, não conseguiam participar de outras coisas na vida cotidiana entre o espaço urbano e espaço rural e hoje eles conseguem ter essa interação. Sem contar que a comunidade foi crescendo, os jovens que até então eram jovens, começaram a casar e optaram por continuar morando na comunidade. Hoje, há cerca de 23 famílias morando no quilombo do Grotão e vivendo não só do Ubuntu, continuam com suas práticas tradicionais como o plantio, produção de farinha e criação de peixes”.
O projeto serviu também para que as pessoas pudessem perceber possibilidades dentro do território, como a criação, consumo e a melhoria da qualidade alimentar, não precisando necessariamente comprar de outros lugares, e sim consumir aquilo que a própria comunidade produz.
Oportunidade única, o jovem quilombola, Laelson Ribeiro, foi contratado pelo projeto e acompanhou de perto a implantação do Ubuntu nas comunidades. Ele fala do empenho dos moradores. “O Projeto fez com que as pessoas passassem a inserir alimentos saudáveis na sua alimentação. A harmonia dentro das comunidades também foi um ponto positivo, foram feitos vários encontros para a troca de saberes, um compartilhando conhecimento para outras pessoas de diferentes comunidades.
” Laelson completa: “Através do Ubuntu, a solidariedade entre os membros da comunidade foi fortalecida, a união do grupo não mediu esforços para ajudar o próximo. E o mais importante, conseguimos implementar o projeto e a comunidade está conseguindo produzir até hoje alimentos saudáveis e de qualidade”.