“O projeto Soberania Alimentar chegou em nossa comunidade no contexto da pandemia, num momento muito difícil, isoladas socialmente por causa da COVID-19, muitas famílias já não tinham comida e material de higiene.” Conta Joaton Pagater Suruí, indígena e coordenador de campo da aldeia Gãpgir, terra indígena Sete de setembro, localizada no estado de Rondônia (RO).
O projeto Soberania Alimentar integra o Àwúre, uma iniciativa da Organização Internacional do Trabalho (OIT), do Ministério Público do Trabalho (MPT) e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), é financiado com recursos do MPT decorrentes de multa ou indenizações referentes à recomposição dos bens trabalhistas lesados e foi implementado na aldeia pela OIT em parceria com a Associação GAP EY, beneficiando 70 indígenas de 15 famílias.
O projeto “Soberania Alimentar” auxilia a compra de equipamentos e insumos e promove o apoio para os indígenas trabalharem na roça, produzindo alimentos para consumo próprio de acordo com sua tradição alimentar, o que assegura a segurança alimentar e nutricional das famílias. O excedente dos plantios e outros alimentos produzidos, como a castanha, café, amendoim, mel orgânico, mandioca e banana são comercializados, o que gera renda para as famílias.
Além desse estímulo, o projeto capacita os e as jovens da aldeia na extração de própolis e amplia as produções, como a apicultura. Outra frente de ação é investir em formas de manter a floresta em pé, por meio de uma cadeia produtiva que a sustenta, conserva a e não degrada a natureza.
Para Joaton Pagater Suruí, o projeto chegou com um diferencial importante: o respeito à cultura dos indígenas da aldeia.
“Dependíamos da cidade para comprar parte da nossa comida, insumos e equipamentos para o trabalho nas roças e também para vender alguns produtos como café e castanha. Após muitas reflexões e discussões de como seria nosso trabalho para sobrevivermos em meio a essa pandemia, chegamos à conclusão que deveríamos investir toda nossa energia e trabalho em projetos que garantem nossa soberania alimentar e deixem a floresta em pé para frear a questão das mudanças climáticas que já nos atinge drasticamente”
Por não haver equipamentos e insumos disponíveis para trabalhar a roça, antes do projeto chegar à aldeia, a comunidade não produzia feijão, melancia, pupunha e amendoim – alimento que mesmo sendo tradicional, havia deixado de ser cultivado.
“A Forest Trends que já trabalha conosco há alguns anos, conhece bem nossa realidade e sempre nos apoia, com recursos, consultoria e nos ajuda a buscar novas parcerias ,inclusive fez a articulação com a OIT e MPT e apresentou nossa Associação Gap Ey para o começo de um novo trabalho. Com apoio da OIT, não somente o apoio financeiro, mas a forma que trabalham conosco, nos respeitando culturalmente e nos consultando sempre sobre como queremos os projetos, tivemos a chance de nos organizar novamente investindo nas roças e alimentos tradicionais, e ampliando nossa produção e escoando nossos produtos gerando renda para comunidade. Neste momento, a OIT está pensando em dar continuidade a esse projeto, temos a intenção de ampliar para outras aldeias da nossa região oferecendo além de equipamentos e insumos, cursos de formação como apicultura, manejo de solo, monitoramento do território, entre outros”, acrescentou.
O conceito de soberania alimentar é fundamental para assegurar a produção de alimentos por meio da agroecologia e outras práticas que respeitem a vida, cultura e a justiça social. Por isso, ela vai além da segurança alimentar. Defende que um povo livre e soberano precisa de autonomia para produzir e comercializar localmente seus alimentos.
O objetivo central do projeto é resgatar as tradições e, com elas, a história, memória e cultura. Por meio da produção agroecológica é possível tornar, de maneira sustentável, uma população autônoma, com uma vida digna, com saúde e capaz de produzir alimentos saudáveis e vendê-los a preços justos, fazendo com que cheguem a um número maior de pessoas. Além disso, o investimento nos povos originários significa a preservação do meio ambiente. Trata-se de um processo de resgate de memória combinado com novas tecnologias, que possibilita o aumento da produção e sua diversificação, mas com a manutenção da cultura e do cuidado com a terra.
A Oficial Técnica em Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho, da OIT, Thaís Dumêt Faria ressalta o valor desse trabalho na garantia dos patrimônios alimentares dos povos originários.
“Com a pandemia, a situação da insegurança alimentar foi agravada, tornando o projeto ainda mais urgente e ações emergenciais foram desenvolvidas. A beleza dessa iniciativa é colocar os povos originários no centro do processo, como deve ser, como senhores e senhoras dos saberes e com seus direitos garantidos. A sociedade toda ganha em ter preservado nosso meio ambiente e em ver a terra produzindo alimento saudável e novas histórias para contar.”
” Os povos originários e as comunidades tradicionais vêm sendo foco da atuação da OIT há muito tempo, com o cuidado em respeitar suas práticas e culturas e valorizá-las como saberes e história que precisam ser cuidados e preservados. A OIT aprovou a Convenção no. 169 sobre Povos Indígenas e Tribais, que vem sendo aplicada e utilizada como referência de legislação internacional em todo o mundo. Como organização tripartite, ou seja, formada por trabalhadores, empregadores e governo, a OIT busca promover o diálogo social com vistas a garantir uma vida digna e livre de exploração para todas as pessoas e que o trabalho decente seja uma realidade.Por meio do diálogo social, a OIT tem implementado projetos pilotos, como fonte de boas práticas, realizado capacitações e apoiado seus constituintes na construção de projetos, planos e políticas para a garantia dos direitos dos povos tradicionais”, completou.
Previsto na Convenção no. 169, o direito de consulta prévia pode ser resumido como o poder que os povos originários e comunidades tradicionais têm de influenciar efetivamente o processo de tomada de decisões administrativas e legislativas que lhes afetem diretamente.
“O estado de Rondônia é muito rico em patrimônio cultural, temos diversas terras indígenas, terras quilombolas reconhecidas e em processo de reconhecimento pelo Estado, e através disso é necessário programas e medidas que estimulem a autonomia desses povos. A autonomia só é possível a partir do momento que não haja insegurança alimentar. Quando pensamos em um programa que haja a valorização da cultura, o resgate de antigos hábitos desses povos, isso não pode ser dissociado de forma alguma da possibilidade que essas comunidades tenham de se autogerir e de ter uma soberania alimentar”, disse a procuradora do MPT de Rondônia, Marina Tramonte.
Resultados – Desde a sua implementação em outubro de 2020, o projeto Soberania Alimentar aumentou de 10% a 80% a produção de 12 alimentos tradicionalmente cultivados pelas famílias da aldeia Gãpgir, introduziu o cultivo de mais 4 produtos e a criação de galinha poedeira e aumentou o valor de comercialização dos alimentos produzidos, como no caso da castanha. Com a aquisição de equipamentos, como sacaria e material para produção de estufa e seladora para a secagem e comercialização, o valor da castanha cresceu 160%, passando de R$2,50, o quilo, para R$6,50. Com o Soberania Alimentar, os indígenas viram a renda das famílias aumentar 114,22%, passando de R$ 1.800,00/ano para R$ 3.856,00/ano, por família.
O café produzido na aldeia ganhou um novo mercado potencial. Por meio de uma parceria entre a empresa Café Três Corações e a cooperativa COOPAITER-Cooperativa Paiter, foi produzido um microlote especial do café orgânico paiter feito na comunidade.
“Com essa iniciativa apoiada pela Àwúre, conseguimos aumentar a produção dos nossos produtos e, com a compra de equipamentos e insumos dinamizamos nossos trabalhos nas roças e essa produção duplicou, isso nos levou a procurar novos compradores para escoar nossa produção. Antes vendíamos o café e a castanha na época da produção maior, agora estamos comercializando outros produtos como o mel orgânico e a banana. A vantagem que nos trouxe é que agora temos uma produção todos os meses do ano para vender, com destaque para banana”, disse o presidente da Associação GAP EY, Robson Yabnoyãam Suruí
O Àwúre reconhece o valor e importância da soberania alimentar, que é algo que está diretamente relacionada ao direito de as pessoas escolherem a forma que os alimentos serão produzidos e consumidos, com respeito aos meios de vida, sendo fundamental a existência de políticas que apoiem essa escolha.