Após entendimento da maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), que derrubou a tese do Marco Temporal por considera-la inconstitucional, a decisão ainda precisa de complementação para ser considerada, de fato, uma vitória.
A tese do marco temporal determinava que a reinvindicação de indígenas sobre a posse de terras era limitada a comprovação de ocupação ou processo de disputa até 05 de outubro de 1988, quando a Constituição Federal foi promulgada. Esse entendimento perpetuava a violência territorial à qual esses povos já são sujeitados desde a chegada dos portugueses, em 1500. É sabido que a terra é fator essencial para a sobrevivência indígena, estando diretamente ligadas ao fator existencial de suas comunidades, cultural e espiritualmente. Importante ressaltar que a imposição de um marco temporal desconsidera o princípio fundamental de consulta e consentimento prévio aos povos indígenas que habitam essas terras, além de ignorar o histórico de migração compulsória que muitos enfrentaram, sendo expulsos de seus territórios anos antes da promulgação da Constituição de 1988.
Além disso, a questão das terras indígenas vai além dos direitos dos povos originários no Brasil, e se torna uma questão ambiental. Segundo dados do IBGE e do ISA, 98% das terras indígenas se encontram na Amazônia. O solo indígena, é extremamente preservado na região, sendo que as 327 áreas ocupadas por povos originários representam ¼ do bioma e só perderam 1,5% da vegetação primária, como apontam dados do INPE. Enquanto isso, o avanço do desmatamento já representa mais de 20% no restante da região. Dessa forma, as Terras Indígenas (TIs) demonstram ser uma importante barreira contra o desmatamento, além de impulsionar a manutenção dos estoques de carbono, que ajudam a regular o clima e evitar que o aquecimento da Terra seja ainda mais intenso, como apontam os dados publicados na revista científica Proceedings of the National Academy of Sciences.
Próximos passos
Agora, com a definição de inconstitucionalidade do marco por 9 votos a favor e 2 contra, o STF precisa elaborar a “tese” que sustentará sua decisão, ou seja, que vai definir pontos que ficaram pendentes no entendimento sobre as regras de demarcação de terras.
Na prática, a decisão da Corte não resolve apenas a disputa de uma área entre índios Xokleng e o Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA) – que foi o caso gerador da análise da tese do Marco Temporal –, mas pacifica a interpretação constitucional e cria uma jurisprudência a ser aplicada em outros casos similares daqui para frente.
A possibilidade de indenização tanto indígenas quanto de não-indígenas em relação a áreas ocupadas e reivindicadas é outro tópico que pode ser melhor definido na tese do Supremo.
Outro ponto de atenção se deu durante o voto do ministro Dias Toffoli, que propôs que o tribunal desse um ano para que o Congresso Nacional aprovasse uma lei regulamentando o §3o do art. 231 da Constituição Federal, que permite a exploração mineral e hidrelétrica em territórios indígenas. Por ter sido citado durante argumento de voto do ministro, esse ponto pode constar na tese final, o que representa uma ameaça, já que poderá impulsionar a aprovação do PL 2.903/23, que tramita no Congresso.
Após ser aprovado na Câmara como PL 490/07, o PL 2.902/23 tramita agora na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) no Senado, após parecer favorável na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA). A proposta representa um grande retrocesso, pois visa tornar lei o marco temporal. Além disso, a proposta ainda altera o “Estatuto do Índio” para permitir um “contrato de cooperação entre índios e não índios”, com o objetivo de facilitar atividades econômicas em terras indígenas. O contato com povos isolados é outro tópico sensível do projeto, que prevê a interação “para intermediar ação estatal de utilidade pública”.
Assim sendo, mesmo com a decisão do STF, é preciso acompanhar as tramitações de propostas que ameaçam os direitos indígenas.
O que diz o MPT?
O Ministério Público do Trabalho, por meio do Grupo de Trabalho Povos Originários, Comunidades Tradicionais e Periféricas, elaborou duas notas técnicas para abordar o Marco Temporal e os projetos de lei que visam regulamentar as demarcações de terras indígenas.
Nota técnica sobre Marco Temporal
Na nota sobre o marco temporal, O Ministério Público do Trabalho aborda tópicos como a proteção constitucional, os direitos originários, o abandono voluntário, o redimensionamento das terras, a indenização e o devido processo, bem como a relação entre meio ambiente e as cosmovisões indígenas. Além disso, o documento trata também sobre a proteção ambiental, as atividades tradicionais e a importância crucial da consulta aos povos indígenas em todas as decisões que impactam suas vidas.
O documento explicita a diferença entre a posse tradicional indígena, instituto de direito constitucional, e a posse civil. A partir disso, destaca que a proteção constitucional aos territórios desses povos se dá em virtude de ocupação tradicional e não temporal ou imemorial, independendo de comprovação da presença física em 5 de outubro de 1988, como data limite para reconhecimento de direitos.
“Somente o abandono voluntário pode configurar a ausência da relação de tradicionalidade, não existindo limite temporal para o retorno à terra tradicionalmente ocupada”, pontua a nota.
O documento delimita ainda entendimentos sobre indenizações por conta de violações, além de destacar a importância de levar em consideração as cosmovisões indígenas acerca dos direitos da natureza.
Além disso, assegura que é direito das comunidades tradicionais participarem das decisões acerca da administração das terras em que vivem e produzem: “Os povos indígenas devem ser consultados, mediante procedimentos apropriados e por meio de suas instituições representativas, sempre que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas, suscetíveis de os afetar, em especial projetos de desenvolvimento”, destaca a nota.
Acesse a íntegra da nota técnica aqui.
Nota técnica sobre PL 490/07 e PL 2.903/23
No contexto legislativo, o MPT elaborou nota onde aborda os projetos de lei que buscam regulamentar o artigo 231 da Constituição Federal, que trata do reconhecimento, demarcação, uso e gestão das terras indígenas no Brasil.
O PL 490/07 foi aprovado na Câmara dos Deputados no final de maio e já tramita com celeridade nas Comissões do Senado, como PL 2.903/2023. O projeto transfere do Poder Executivo para o Legislativo a competência para realizar demarcações de terras indígenas. Segundo o texto, a demarcação será feita mediante aprovação de lei na Câmara dos Deputados e no Senado.
Nesse sentido, a contribuição do MPT busca aprofundar a compreensão sobre como essas mudanças propostas podem afetar os direitos indígenas, incluindo o processo de demarcação e a relação dessas terras com o meio ambiente. Ponto a ponto e de forma técnica, a nota destaca as inconstitucionalidades do projeto acerca do procedimento administrativo de demarcação e ampliação de terras indígenas já delimitadas.
O documento destaca ainda que o projeto do Marco Temporal apresenta diversas violações: à vedação de retrocesso, à autodeterminação dos povos indígenas, à previsão constitucional de cultura e ao caráter meramente declaratório das terras indígenas. A nota aponta que o projeto é deficiente na proteção de indígenas isolados por violar princípios da autodeterminação e autogoverno, pontuando que é vedada a assimilação forçada desses povos, além da representação de riscos à saúde dos mesmos.
É possível acessar a íntegra da nota técnica aqui.
Alerta
Após derrubada da tese do Marco Temporal pelo Supremo Tribunal Federal, a bancada ruralista do legislativo anunciou que está recolhendo assinaturas para uma Proposta de Emenda à Constituição, já que, mesmo em caso de aprovação o PL 2.903/23, como está, seria derrubado no STF.