Durante o governo Bolsonaro houve um aumento da presença de grupos religiosos na região amazônica para evangelizar indígenas
O aumento de missionários na região Amazônica durante o governo Bolsonaro explicita a extensão da luta por respeito à soberania, cultura, espiritualidade e autonomia dos povos indígenas no Brasil. É sabido que os últimos anos, esses povos enfrentaram muitas dificuldades, violências, retrocesso de direitos e uma pandemia global que, por falta de políticas públicas de proteção e cuidado de saúde voltados a população indígena. Andrew Tonkin, missionário americano que foi processado no Brasil por invadir terras indígenas, afirmou em entrevista para o Le Monde Diplomatique Brasil: “Nós respeitamos os governos até o ponto em que eles falam contra a palavra de Deus. (…) A palavra de Deus [está] acima de tudo”. Quando perguntado se tinha tido acesso a povos isolados do Vale do Javari, Tonkin respondeu: “Não tenho planos de entrar em contato com ninguém além daqueles que o Senhor Jesus coloca em meu caminho”.
Em nota divulgada em 2020, a UNIVAJA denunciou a promessa de cargos na Funai local e outras vantagens para os indígenas, o que causou grande instabilidade nas aldeias em favor de fortalecer o proselitismo religioso.
Um ponto de atenção das denúncias se dá pelas tentativas de acesso a povos isolados – o que é uma violação à Constituição Federal e aos tratados internacionais firmados pelo Brasil, como a Convenção 169, e que visam o respeito absoluto aos costumes e modos de vida dos povos originários.
Localizada na divisa com Peru e Colômbia, o Vale do Javari é a segunda maior terra indígena do Brasil e é uma das regiões que mais sofrem com essas invasões, já que tem a maior concentração de povos isolados do mundo. Eliesio Marubo, procurador jurídico da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) reafirma que durante o governo de Jair Bolsonaro a presença dos religiosos e as investidas a indígenas na região se intensificaram. “Eles buscam sobretudo contato com alguns indígenas que moram na cidade, oferecendo dinheiro e vantagens”, relata.
Em 2020, a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari entrou com ação na Justiça Federal para pedir a expulsão de missionários que estavam buscando o povo Korubo, considerado de recente contato. Ação que acusa Andrew Tonkin, da missão Frontier International, citado no início da matéria. Quando questionado sobre o respeito às leis que protegem os indígenas do contato com agentes externos, Andrew afirma que “colocamos Jesus Cristo e a palavra de Deus acima de tudo. É nossa autoridade final”.
Leia a entrevista de Andrew na íntegra.
Denúncia à ONU
Nos últimos anos, organizações indígenas e de proteção fizeram denúncias à Organização das Nações Unidas acerca dos abusos e dos avanços de invasões. Em 2020, o ISA (Instituto Socioambiental) apresentou relatório que apontou que a atuação de evangelizadores na região amazônica em áreas indígenas com povos isolados levou risco de genocídio dessa população.
O documento, apresentado à Comissão de Direitos Humanos da organização, também aponta que das 54 Terras Indígenas com registros de povos indígenas isolados (83 registros), 37 delas registram desmatamentos que somaram, até julho de 2019, 336 mil hectares. Em 2019, o desmatamento nessas Terras Indígenas aumentou 113% em comparação com 2018 e 363% maior em comparação com 2017.
O instituto afirma ainda que o desmonte nas políticas ambientais durante os últimos anos foram responsáveis por agravar a situação dos povos isolados. Sobre a FUNAI, o ISA afirmou que “As atividades foram praticamente paralisadas com os cortes orçamentários e a alteração de quadros e coordenações. A instituição sofreu influência de alas religiosas e ruralistas, como foi o caso da nomeação de um missionário para a Coordenação Geral dos Povos Isolados e de Recente Contato (CGIIRC) e que pode colocar em risco a política de não contato, que nos últimos 30 anos evitou epidemias e massacres dos povos isolados”, destaca o documento.
Ameaça às línguas e às culturas indígenas da Amazônia
Especialistas também alertam para as consequências da tradução da Bíblia para línguas indígenas, criticando a SIL (Summer Institute of Linguistics), instituição que desenvolve as “traduções”, para facilitar o trabalho de missionários evangélicos.
De acordo com linguistas e antropólogos brasileiros e estrangeiros, entre eles Noam Chomsky, a organização estadunidense que traduz a Bíblia para línguas indígenas amazônicas, tem atuado com missionários evangélicos. E com isso, desrespeitado a diversidade e os direitos humanos. O SIL (Summer Institute of Linguistics) se intitula uma organização evangélica cristã sem fins lucrativos. Seu objetivo seria estudar, desenvolver e documentar idiomas, especialmente aqueles menos conhecidos, promovendo a alfabetização e a tradução a Bíblia cristã para os idiomas locais.
O linguista Sidney da Silva Facundes, da Universidade Federal do Pará (UFPA) afirma: “Na visão dos missionários, muitos dos elementos da cultura tradicional dos povos indígenas seriam incompatíveis com os dogmas cristãos”. Segundo o especialista em linguística indígena, nesse processo a cosmologia indígena é substituída pela narrativa bíblica do cristianismo. “O povo deixa de contar suas histórias tradicionais, os mais jovens não as aprendem, colocando em risco todo um patrimônio cultural que serve de base para a relação dos povos indígenas com a natureza”, encerrou. Ele, Noam Chomsky e outros 200 especialistas no Brasil e no mundo, dos quais 76 especialistas nas línguas nativas da Amazônia, assinaram carta entregue em dezembro de 2022 à Unesco (Fundo das Nações Unidas para a Educação, a Cultura e a Ciência). A reivindicação é que o órgão vinculado à ONU descontinue a parceria com o instituto.
Foto: Amazônia Real / TI Vale do Javari – Kanamari