“Muitos jovens falam comigo, dizem que eu sou exemplo, mas na verdade eu apenas queria que outros meninos e outras meninas também tivessem a mesma oportunidade. Eu acho que muitos não são como eu, ou não conseguem fazer mais coisas do que eu, justamente porque não tiveram a mesma oportunidade que eu tive. Infelizmente eu sou um exemplo porque sou uma exceção, mas eu luto todos os dias para que isso vire uma regra”. A maturidade e preocupação na fala de Felipe Caetano, jovem cearense de 19 anos, estudante de Direito, ativista pelo direito das crianças com foco na erradicação do trabalho infantil e Conselheiro Jovem do UNICEF traduzem uma trajetória pessoal cheia de obstáculos.
“Eu comecei a trabalhar aos 8 anos de idade e permaneci até os 14 anos. Saí por conta de uma iniciativa do Ministério Público do Trabalho (MPT) e também do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e desde então, tenho dedicado minha vida, da minha adolescência e agora na minha juventude para combater essa chaga social que persiste nos nossos dias”.
O processo para Felipe sair do trabalho infantil não foi fácil, pois todos de sua família trabalharam quando eram crianças. “Esse foi um processo de conhecimento dos meus familiares de que o trabalho infantil na verdade era uma violação dos meus direitos, sendo um fator que me impediria de desenvolver profissionalmente e que eu queria me dedicar aos estudos. Então, depois de convencer minha família eu, de fato, comecei a lutar para libertar outras crianças e outros adolescentes.”
Existem diversos exemplos de projetos sociais que estão transformando a vida de várias pessoas, e na vida do Felipe foi através de um projeto social que houve a mudança de vida. O principal meio foi o Núcleo de Cidadania dos Adolescentes (NUCA), iniciativa do UNICEF. “Foi através desse núcleo eu tomei consciência dos meus direitos, eu fui saber que criança tinha direito de brincar, de estudar, de ser criança. A partir do NUCA foram criados outros comitês de adolescentes voltado para o tema trabalho infantil, o que também é de uma importância extrema.”, conta Felipe Caetano.
“Se eu tivesse oportunidade de conversar com o Felipe Caetano de 18 anos atrás, eu diria a ele para não mudar nem uma vírgula da vida dele. A não ser para sair do trabalho infantil mais cedo e também lembrar ele que a educação, ela sim é o único meio possível para conseguir realizar todos os sonhos, planos e desejos, entre eles, ser médico, engenheiro, advogado, promotor”
“Motivação é momentânea, inspiração a gente leva para vida toda”.
A centenas de quilômetros de distância de Felipe, lá da Bahia, Matheus de Araújo, de 26 anos, morador de uma comunidade quilombola de Feira de Santana na Bahia, a 100 km de Salvador, parece ouvir o jovem cearense e fala: “Motivação é momentânea, inspiração a gente leva para vida toda”. Matheus foi aprovado para o curso de Medicina na Universidade Federal do Recôncavo Baiano, atingindo 980 pontos na redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).
“Quando eu tinha 15 anos, eu vi um médico negro no comercial da Marinha, e então falei, ‘poxa mãe, quero ser médico’, e minha mãe respondeu, ‘para de loucura menino’. Daí em diante eu fiquei com essa vontade e ao completar meus 18 anos eu tentei o vestibular, porém eu não tinha dimensão nenhuma do que era fazer uma redação e eu já sabia a diferença grande do ensino de uma escola pública para uma escola privada”.
Filho de pedreiro e de uma dona de casa, seus pais não tinham como ajudar financeiramente. Então para suprir essa necessidade, Matheus trabalhava em um turno e no outro período dava aulas. “Eu sempre dei meu jeito, trabalhei como carregador, dava aula de reforço, vendia pizza.” E não foi só isso, Matheus precisou estudar em uma casa emprestada, sem energia elétrica e sem internet, mas mesmo com essa dificuldade ele focou nos livros e apostilas.
“A maior dificuldade que eu tive foi financeira, de não ter um cantinho para estudar e falta de apoio, foram situações como essas que dificultaram bastante o meu processo de estudo”.
O jovem chegou a cursar dois anos de enfermagem, mas, mesmo contra a vontade da família, largou o curso para se preparar para o Enem e fazer realmente o curso que ele queria.
“Eu não queria cursar enfermagem, mas sendo o primeiro da minha família a ingressar em uma universidade pública foi muito gratificante. Mesmo que eu estivesse cursando enfermagem, era algo que não estava me fazendo feliz e acabei abandonando o curso em 2017, onde eu era bolsista. Tomar essa decisão foi muito complicado, pois largar o certo que era a universidade e voltar a prestar vestibular era como se eu tivesse voltado à estaca zero. As pessoas já me chamavam de doido antes, e quando decidi sair da universidade, aí que eu escutei mesmo, ‘menino tu é doido”. Conta Matheus, que mesmo assim não desistiu. Estudou e tentou por mais 4 anos, de 2017 a 2020.
“Foram mais de 20 vestibulares e 8 Enem, eu dava reforço para as pessoas que me procuravam pedindo ajuda, então através dessa ajuda eu também estudava o conteúdo para poder ensinar. Com esse dinheiro que eu ganhava ensinando as pessoas, chegavam os meses de novembro e dezembro, eu viajava para outros estados para tentar em outras cidades. Já prestei vestibular em Maceió e em outros estados que tinha vestibular para medicina. Mas indo nessas viagens, eu ia com o dinheiro contadinho, para água, transporte, era tudo bem cronometrado”.
O estudante é o mais velho de seis irmãos. Depois de ter passado por todos os obstáculos, ter feito tanto esforço, hoje ele cursa medicina, e é visto e se enxerga como referência.
“Hoje em dia eu me vejo como referência para jovens negros de periferia que não têm recursos, olham para mim e falam, ‘Esse negão conseguiu, eu também irei conseguir’, eu me sinto lisonjeado pelas pessoas me olharem dessa forma e eu tento ajudar essa galera”. Completa Matheus.
Como dar mais oportunidade
As histórias de dois jovens são inspiradoras, mas trazem para a discussão o mundo de falta de oportunidades, de desigualdades, falta de apoio, de incentivo, falta de políticas públicas para milhões de jovens negros, de comunidades tradicionais e de periferia atualmente no Brasil. De acordo com o levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil continua sendo o 9º país mais desigual do mundo. Se referindo a desigualdade no Brasil com um recorte em raça, os dados apontam que um jovem branco tem duas vezes mais chance de frequentar ou já ter concluído o ensino superior.
Em 2019, na faixa de 18 a 24 anos, um jovem branco tinha aproximadamente duas vezes mais chance de frequentar ou já ter concluído o ensino superior que um preto ou pardo: 35,7% contra 18,9%. Já um jovem morador de um domicílio urbano tinha cerca de três vezes mais chance estar frequentando ou já ter concluído o ensino superior, que um jovem morador de um domicílio rural – 28,1% contra 9,2%. Apenas 7,6% dos jovens na extrema pobreza já haviam completado o nível superior em 2019. Uma proporção oito vezes inferior a verificada entre os jovens do quinto populacional de maior renda (61,5%).
O Especialista em Políticas de Emprego e Mercado de Trabalho do Escritório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) no Brasil, Aguinaldo Nogueira Maciente, pontua entre as principais dificuldades enfrentadas pelos jovens de periferia:
• A falta de oportunidades de trabalho, principalmente de emprego formal, próximas ao local de moradia;
• As altas taxas de evasão escolar, com um grande contingente desses jovens que não completaram o ensino fundamental e o ensino médio, motivadas, sobretudo pelas deficiências no sistema de ensino e na falta de acesso a bens culturais e de lazer;
• A persistência de desigualdades de remuneração no mercado de trabalho para mulheres e negros;
• As lacunas no acesso à internet e a tecnologias digitais, que afetam de forma especial essa população;
• O déficit na infraestrutura de cuidados, tanto para crianças em idade pré-escolar quanto para idosos, o que faz com que muitos jovens (sobretudo as jovens) tenham a responsabilidade de cuidar de algum familiar em casa.
Aguinaldo coloca ainda diversas formas de tentar trazer mais oportunidade e menos sofrimento para as crianças e adolescentes brasileiros. “Buscar implementar políticas públicas para esses jovens, melhorando a qualidade e a atratividade do sistema de ensino e o acesso à cultura, ao lazer e às tecnologias digitais nas periferias; melhor o transporte público e a infraestrutura urbana, inclusive de telecomunicações, nas periferias, para que o deslocamento para o emprego seja facilitado e para que novos empregos sejam gerados nas próprias periferias; combater todas as formas de discriminação salarial no mercado de trabalho; investir na expansão de creches e na infraestrutura de saúde e cuidados, para reduzir o peso dos cuidados domésticos e familiares sobre os jovens e as jovens de periferia e buscar requalificação e oportunidades de desenvolvimento de habilidades socioemocionais e aquelas voltadas ao empreendedorismo e à economia digital são algumas ações que podem fazer com que muitos outros jovens consigam realizar seus sonhos profissionais e alcançar o trabalho decente.”
O Àwúre, iniciativa do Ministério Público do Trabalho(MPT), da Organização Internacional do Trabalho(OIT) e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), acredita e apoia esses jovens que não querem ser exceção, como o Felipe e Matheus. Eles querem que muitos outros tenham chance também de realizar os sonhos.
E para lembrar que é possível, Matheus tem em seu quarto quadros emoldurados com as palavras “sonhe, acredite e conquiste”. Ao ser questionado sobre o que ele falaria para si mesmo anos atrás, Matheus foi confiante:
“Menino, mantenha seu traçado, mesmo com as dificuldades tenha fé, e nunca perca essa fé e a esperança. Você terá bastantes obstáculos, mas sonho foi feito para ser sonhado e realizado, então forças e vá em frente”.