Luiz Fernando Martins da Silva é advogado, professor, doutrinador, mestre em Direito Político pelo PPGR do IMBennett, doutorado em Ciências Políticas (incompleto) pelo antigo Iuperj, doutor honoris causa pela Fatef, ex-ouvidor da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Raciais da Presidência da República, sub-Secretário de Arrecadação Tributária do Município de Duque de Caxias, diretor jurídico do Instituto de Pesquisas das Culturas Negras (IPCN) e do Centro Brasileiro de Documentação e Identificação do Artista Negro (Cidan). Sérgio Luiz da Silva de Abreu é advogado, mestre em Direito do Estado e Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), autor de Descaminhos da Tolerância: O Afro-brasileiro e o Princípio da Igualdade e da Isonomia no Direito Constitucional e Desarquivando Direitos. Ilzver de Matos Oliveira é advogado, doutor em Direito, professor, ativista do movimento negro e de povos de terreiro em Sergipe.
Por Luiz Fernando Martins da Silva, Sérgio Luiz da Silva de Abreu e Ilzver de Matos Oliveira
Foi sancionada no dia 11 de janeiro deste ano, pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a Lei nº 14.532, na ocasião da posse das ministras da Igualdade Racial, Anielle Franco, e dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, no Palácio do Planalto.
Uma vez mais, a ação estatal privilegiou o campo penal no combate ao racismo, atendendo as vozes que ecoam da comunidade negra, mas não únicas, outras são as que reivindicam maiores resultados nas ações de responsabilidade civil por danos sofridos pelas vítimas do racismo. Isso com certeza merecerá atenção destacada por parte dos civilistas e privatistas.
Essa arquitetura de direitos humanos de cunho racial formará um adensamento jurídico legal, repercutindo nas ações no campo socioeconômico.
O debate sobre a revisão da legislação de combate ao racismo
A produção legislativa nacional sobre o enfrentamento ao racismo inovada pela Lei nº 14.532/2023 altera a Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989 (Lei do Crime Racial), e o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), para tipificar como crime de racismo a injúria racial, prevendo pena de suspensão de direito em caso de racismo praticado no contexto de atividade esportiva ou artística, além de pena para o racismo religioso, recreativo e para o praticado por funcionário público.
A nova lei deriva de um esforço de renomados juristas negros, após dez meses de funcionamento da comissão criada pela Câmara dos Deputados destinada a avaliar e propor estratégias normativas com vistas ao aperfeiçoamento da legislação de combate ao racismo estrutural institucional no país, tendo sido presidida pelo ministro Benedito Gonçalves, do Superior Tribunal de Justiça.
Não cabe dúvida de que os trabalhos que orientaram a elaboração do projeto de lei tiveram como objetivo dotar o sistema jurídico de instrumentos para combater problemas históricos, como a desigualdade entre negros e brancos no acesso à educação e no mercado de trabalho, o encarceramento em massa da população negra e a violência das abordagens policiais contra essa parcela da sociedade.
O texto sancionado sem vetos, dada a qualidade do trabalho preparatório, tem preocupação com a eficácia social, tão importante na educação para os direitos humanos. Outro tanto, transborda a esfera punitiva, trazendo inovações ao sistema da Justiça Criminal. As alterações introduzidas nos diplomas legais certamente terão, ao longo do tempo, efeitos no Direito Econômico, Tributário e Financeiro e nos direitos sociais. As medidas de combate ao racismo associadas ao novel texto legal impulsionarão o combate ao racismo institucional no setor público, bem como o combate ao racismo institucional no setor privado.
Os juristas que atuaram nesse debate recomendaram em seu relatório outras medidas de alcance importante no combate ao racismo, por meio de sugestões na renovação da política de cotas raciais nas universidades; a criação de um fundo para a igualdade racial; definição de parâmetros para as abordagens policiais contra pessoas negras; e a implementação de programas de compliance em direitos humanos para superar a discriminação racial no setor privado.
Sem sobra de dúvidas, cada vez mais se faz necessária a participação da sociedade civil na elaboração de projetos de lei que tenham impacto social, e que, após sancionada a Lei, os operadores do Direito tenham o interesse no estudo da mens legislatoris, enquanto meio de interpretação capaz de alcançar o contexto em que foi criada nos anseios dos destinatários da norma jurídica, in casu, a comunidade étnico-racial vulnerável.
Racismo, preconceito, discriminação e injúria raciais – uma brevíssima revisão
A fim de combater a prática do racismo, o Estado brasileiro, ante o clamor da comunidade negra, inicialmente editou leis que desconsideravam a gravidade do racismo, a exemplo da Lei nº 1.390/1951 (Lei Afonso Arinos), que definiu o racismo como sendo mera contravenção penal. Depois, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, o Artigo 1º, inciso III e o Artigo 5º reconheceram, respectivamente, a dignidade humana e a igualdade como princípio e direito fundamentais e, em inédita previsão na ordem jurídica, a prática do racismo foi alçada ao status de crime imprescritível e inafiançável.
Pari passu, foi editada a Lei nº 7.716/1989 (Lei Caó) e suas alterações, para complementar o dispositivo Constitucional. Finalmente, ainda no campo penal, foi sancionada a Lei nº 9.459/97 que, ao alterar o Artigo 140, do Decreto-Lei nº 2.848/1940, introduziu no parágrafo terceiro a controversa prática da injúria racial, que acomodou a resistência social e judicial contra a aplicação da Lei Caó, quase a esvaziando de existência e de sentido.
Não bastasse tudo isso, diversas alterações posteriores e julgados do Supremo Tribunal Federal — STF — incluíram na seara da Lei Caó a repressão de outras práticas discriminatórias, como as de origem nacional, religião, contra a pessoa idosa, pessoa com deficiência e à homofobia, trazendo maior complexidade na aplicabilidade jurídica do tema.
Uma análise da Lei nº 7716/91(Lei Caó) permite entender o quanto de avanço representou para a construção de um direito racial, em um contexto pós-Constituinte ainda contaminado por bancadas conservadoras no Congresso Nacional. Para isso, é necessário entender o contexto político, que, embora mudancista — por força dos movimentos sociais a pleitear demandas políticas reprimidas — ainda se mostrava incapaz de maiores conquistas.
A conceituação das categorias racismo, preconceito e discriminação racial deve evitar imprecisões, para além das terminológicas com consequências embaraçosas, sobretudo no campo do direito penal.
Na obra O Papel do Direito Penal no Enfrentamento da Discriminação, Kátia Elenise Oliveira da Silva define que o primeiro, racismo, é uma ideologia; o segundo, preconceito, uma atitude interna, psicológica; e o terceiro, discriminação uma prática ofensiva ao direito à igualdade. Assim, apenas a discriminação pode ser coibida criminalmente — “por se manifestar em uma conduta, ou na vontade exteriorizada do homem, projetada no mundo, pode ser regulada pelo direito, desde que seja injusta e limite direitos constitucionalmente consagrados do indivíduo discriminado”, diz a autora.
Dessa maneira, os Artigos 3º a 14 da Lei Federal nº 7.716/1989, por versarem sobre condutas discriminatórias — impedimento ou restrição de acesso a serviços, locais ou oportunidades educacionais e empregatícias — não são, de qualquer modo, ineficazes ou inconstitucionais. Pelo contrário, tais preceitos de preservação ao princípio constitucional da igualdade devem ser aplicados e exigidos pelas autoridades públicas. As discriminações penalmente relevantes descritas no Artigo 1º da referida Lei se relacionam a fatores de “raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. O preconceito contra mulheres e homossexuais, entre outros, passou a ser proibido mediante incriminação. Tal inovação traz aspectos positivos, na medida em que se aplica às condutas discriminatórias inscritas nos dispositivos legais inicialmente mencionados.
Quanto ao impróprio Artigo 20 da Lei Caó, que versa sobre três condutas diferentes — praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional —, contudo, verifica-se que pretende reprimir as práticas de preconceito, o que é penalmente impossível, dado que se tem por alvo uma predisposição psíquica, interna do sujeito ativo.
O Direito Penal não pode pretender coibir pensamentos ou visões de mundo, senão, condutas praticadas no plano social. Em relação aos dois últimos núcleos do tipo legal de crime — induzir e incitar — percebe-se notavelmente o equívoco da Lei 7.716/1989. O discurso crítico a determinadas minorias pode ser interpretado, e geralmente o é, como incitação à discriminação. Desde a divulgação da ideologia racista do nacional-socialismo até à divulgação de doutrinas religiosas, diversas manifestações do pensamento podem ser lidas como incentivos à prática da discriminação. Visível, nos exemplos, a ausência de proporcionalidade na tutela penal.
Evidentemente que a discriminação racial promove danos de ordem psicológica. Não é por menos que, embora ele não esteja inserido em diretrizes como as da Associação Americana de Psiquiatria, é importante que tenhamos uma compreensão do que é o trauma racial.
Em termos psicológicos, trauma é uma resposta emocional a um evento perturbador, como um desastre natural ou um crime violento, por exemplo. Seguindo esse raciocínio, o trauma racial é uma reação a experiências de discriminação racial, incluindo violências ou humilhações, e que também pode ser chamado de trauma ou estresse traumático baseado na raça.
Todos os tipos de trauma, incluindo o racial, podem contribuir para o desenvolvimento do transtorno de estresse pós-traumático, uma condição marcada por uma série de efeitos mentais e físicos e que pode ser desafiadora do ponto de vista do tratamento.
As experiências traumáticas ativam as respostas corporais de luta, fuga ou paralisia do corpo, desencadeando a liberação de hormônios do estresse — cortisol e adrenalina — que causam uma série de mudanças fisiológicas, incluindo aumento da frequência cardíaca e alerta mental elevado. Em condições normais, assim que a experiência termina, o corpo retorna gradualmente ao seu estado de equilíbrio.
Portanto, tais danos transbordam a esfera criminal, sendo reparáveis no campo da responsabilidade civil por danos morais e psicológicos.
Outro aspecto é que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Habeas Corpus 154.248, no voto do eminente ministro Edson Fachin, afirmou, sobre as diferenças entre racismo e injúria racial, que:
“Vários dos crimes previstos na mencionada lei extravagante são, até mesmo, apenados com sanção privativa de liberdade idêntica à do Código Penal. A diferença, desse modo, é meramente topológica, logo, insuficiente para sustentar a equivocada conclusão de que injúria racial não configura racismo. Conforme sustenta Guilherme de Souza Nucci (op. cit., p. 726), o rol daquele diploma não é exaustivo, devendo-se considerar a conduta prevista no art. 140, § 3º, do CP ‘mais um delito no cenário do racismo, portanto, imprescritível, inafiançável e sujeito à pena de reclusão’. Observe-se, nesse contexto, que o crime em análise, por ser sujeito à pena de reclusão, não destoa do tratamento dado pela Constituição ao que ali se prevê como crime de racismo. Acrescento ainda que o legislador, na esteira de aproximar os tipos penais de racismo e injúria, inclusive no que se refere ao prazo para o exercício da pretensão punitiva estatal, aprovou a Lei nº 12.033/09, que alterou a redação do parágrafo único do art. 145 do Código Penal, para tornar pública condicionada, antes privada, a ação penal para o processar e julgar os crimes de injúria racial. Assim, o crime de injúria racial, porquanto espécie do gênero racismo, é imprescritível. Por conseguinte, não há como se reconhecer a extinção da punibilidade que pleiteiam a impetração. Ante o exposto, denego a ordem de habeas corpus.”
Tal entendimento foi seguido dos votos dos ministros Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Dias Toffoli, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Luiz Fux e Alexandre de Morais, tendo como voto vencido o do ministro Cássio Nunes. O ministro Gilmar Mendes não participou do julgamento.
A decisão mereceu elogios do hoje ministro dos Direitos Humanos e Cidadania, Silvio de Almeida, presidente do Instituto Luiz Gama, em entrevista ao site Consultor Jurídico.
Conforme Almeida, “apesar de o Direito Penal ser um instrumento bastante limitado para o enfrentamento do racismo, a decisão do STF foi acertada e com isso será possível que as ofensas de cunho racista tenham o tratamento adequado por parte do sistema de Justiça do Brasil” e, em complemento disse que:
“A decisão do STF reafirma a posição do STJ que firmou o entendimento de que a injúria racial é uma modalidade do crime de racismo e portanto não pode estar sujeito aos prazos decadenciais que incidem sobre os crimes contra honra, subordinando-se ao inciso XLII do artigo 5º da Constituição Federal que estabelece que ‘a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível’. A decisão é acertada, sobretudo porque em muitos casos havia a desclassificação do delito de racismo para injúria racial e, neste caso, invariavelmente era reconhecida o decurso de prazo decadencial, o que resultava, na prática, na impunidade do ofensor, uma vez que não poderia haver condenação neste caso”.
Lei nº 14.532/23: quando apenas o aumento de penas não basta
A criação de leis penais que visam coibir a prática de racismo se torna a última instância possível, quando os mecanismos morais e éticos não são suficientes para a inibição do agir individual, coletivo ou institucional racista. Tal compreensão movimentou a militância social especializada, o movimento negro, para reivindicar o aperfeiçoamento e aplicação dessa legislação e, também, exigir a criação de legislação de natureza civil visando a igualdade de direitos e de oportunidades, a exemplo das políticas de ação afirmativa e de seus mecanismos, como as cotas raciais no campo do ensino, do trabalho e na saúde pública.
Mas, mesmo com a vigência de todas essas medidas legislativas que almejam atingir a abolição social dos negros, nos vemos hoje numa etapa de produção legislativa que poderemos denominar de “Fase de Revisão”, que merece o mesmo nível de rejeição da Lei Áurea de 1888 e pela mesma razão: o desejo de querer demarcar, com e por leis, o fim da prática do racismo e de seus efeitos deletérios, sem as transformações profundas exigidas pelo momento histórico.
Evidenciou-se a importância da legislação penal no combate às práticas racistas, mas, também, que ela não é suficiente para resolver a questão da desigualdade racial, sem profundas transformações no campo socioeconômico no seio da comunidade negra.
O recrudescimento da legislação penal, no sentido positivo de melhor especificar as práticas racistas e, ainda, agravar as penas existentes, como pretende o Projeto de Lei nº 4.566/2021 — a incidir nas atividades esportivas, religiosas, artísticas ou culturais destinadas ao público — resta ingênua e não melhorará a desejável eficácia social da norma, ante a persistência da ideologia racista no agir individual, coletivo e institucional, bem como ante a própria doutrina do direito penal, como é o caso da teoria do direito penal mínimo.
Concluindo, além do que foi acima analisado, espera-se que os membros dos novos governos estaduais e federal, especialmente o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, bem como os novos membros do Poder Legislativo federal, mantenham os compromissos assumidos nas suas plataformas de governo e de campanha eleitoral para com a promoção da igualdade racial, sem olvidar a continuada cobrança e ação política da comunidade negra e do movimento negro junto a eles.