Denise Ferreira é Expert em adoção e Perícia Social. Assistente Social, escritora, professora, palestrante, Mestra em Educação (UFAL), especialista em Serviço Social e Política Pública (UNB), Gestão Pública (SENAI-CIMATEC), servidora do Tribunal de Justiça da Bahia-TJBA, lotada na Vara da Infância e Juventude de Salvador. Coorganizadora e autora dos livros Perícia Social e Defesa de Direitos (lançamento nacional), Peritaje em el Trabajo y La Defensa de los Derechos (lançamento internacional com autores de 6 países: Brasil, Argentina, Colômbia, Porto Rico, Espanha e Canadá), autora na obra Materialização do Pensamento Crítico na Produção de Documentos Técnicos do Serviço Social.
Atualmente meus trabalhos, estudos e pesquisas estão concentrados no campo sociojurídico, na área da adoção, e penso a adoção numa perspectiva afrocentrada, decolonial e antirracista. Ao discutirmos mitos e verdades da adoção, podemos dizer que existem diversas abordagens que o compõem. Contudo, meu recorte prioritário é o étnico-racial, presente fortemente na história da adoção no Brasil.
Uma das grandes dores do adolescente em vulnerabilidade social e que se encontra em uma instituição de acolhimento é, sem dúvida, sua etnia, sua cor afrodescendente, importante marcador no seu estado de vulnerabilidade.
Assim, pensar a adoção nas relações étnico-raciais é romper o tabu de discutir as questões raciais no instituto da adoção, pois tal discussão pode contribuir para desvendar mitos, preconceitos, estigmas que podem impactar na adoção dos jovens institucionalizados. Uma outra grande dor desses jovens disponíveis para a adoção é o fato de que, culturalmente, no Brasil, os dados apontam que um número muito expressivo de postulantes à adoção tem preferência pelo perfil etário de crianças: 0 a 2 anos e, quando se estende, até 5 anos de idade. São raras, portanto, as oportunidades de adoção nacional na adolescência. Se, na contemporaneidade, discutimos e ratificamos que o racismo é estrutural, o instituto da adoção compõe essa estrutura e também é diretamente impactado pelas expressões individuais e institucionais do racismo.
Uma das grandes dores ao pensar em crianças e, em especial, adolescentes institucionalizados é o perfil étnico desses jovens, pois a etnia/cor é uma condição que pode dificultar o acesso a uma família substituta. Crianças e adolescentes afrodescendentes (pretos e pardos) tendem a ser menos desejados para o pleito adotivo no Brasil, e é justamente esse o perfil étnico-racial majoritário disponível para adoção em todas as regiões do país, superando, inclusive, o próprio percentual de afrodescendentes nessas mesmas populações:
Perfil étnico-racial de crianças e adolescentes disponíveis para adoção no Brasil:
- Região nordeste: afrodescedentes: 83.5 %
- Região centro-oeste: afrodescedentes: 74.7 %
- Região sul: afrodescedentes: 45.9 %
- Região sudeste: afrodescendentes: 65%
- Região norte: afrodescedentes: 81.5 %
E, para pensar nesse recorte, os dados do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), em 2021, fortalecem a necessidade dessa discussão, visto que o SNA (Sistema Nacional de Adoção) aponta que a proporção de interessados por esse perfil étnico não se apresenta equilibrado entre adotantes e adotáveis.
Para compreender a adoção étnico-racial no Brasil faz-se necessário compreender de onde vêm esses jovens institucionalizados. Compreender que as crianças e adolescentes disponíveis para adoção resultam das questões sociais – conjunto das expressões que definem as desigualdades sociais e raciais, manifestadas no cotidiano da vida dos indivíduos – do país. Na adoção, essas expressões se manifestam em nossa sociedade, por meio da miséria, fome, violência, do abandono, desemprego, desamparo no exercício materno, desigualdades sociais e do próprio racismo estrutural. Ou seja, pela ineficiência do Estado, pela invisibilidade das vulnerabilidades advindas do racismo. Então, é pensar a adoção em sua inteireza: gênero, classe e cor.
Por isso, sempre reafirmo que a questão social no Brasil tem gênero, cor e classe!
Acredito que algumas medidas podem contribuir para a vida desses jovens. Dentre elas, a construção de projetos de vida desses jovens, a partir do acesso a representatividades potentes, para que, no fim de sua institucionalização, aos 18 anos de idade, tenham desenvolvido suas próprias potencialidades afroafetivas, afrocentradas, decoloniais, a fim de se fortalecerem, de se reconhecerem, de se descobrirem sujeitos de suas próprias vidas, cônscios de seus poderes, dos seus direitos, dos seus deveres, dos desafios, a serem superados.
Assim, é de suma importância levar para as instituições de acolhimento o acesso a atividades capazes de trabalhar as questões étnico-raciais que atingem e afligem esses jovens, fortalecendo-os, pois, ao saírem das instituições estarão ainda mais expostos ao racismo e demais mazelas impregnadas na sociedade brasileira.
Então, no bojo do trabalho das equipes técnicas das instituições de acolhimento, assume papel central o acesso desses jovens ao letramento racial, a referências negras potentes, a informações afrocentradas, a conhecimentos que lhe façam sentido, a partir de abordagens que contribuam com a construção positiva da autoimagem, da saúde mental, da felicidade em poder “ser”, da completude sociocultural e étnico-racial desses jovens (crianças e adolescentes), objetivando a contribuir com a superação de realidades difíceis de exclusão social, vulnerabilidade e institucionalização, fortalecendo sua identidade, potencializando-os para a construção de projetos de vida para a profissionalização, o sustento autônomo, impositivamente precoce nesse momento de desenvolvimento juvenil.
Assim, para os adolescentes em situação de adoção são muitas dores e jornadas a serem vencidas. Acredito que uma potente contribuição é pensar a adoção desses jovens numa perspectiva decolonial, ou seja, pensar na expansão da centralidade de valores e influências para além das referências europeias, historicamente e hegemonicamente semeadas em nossas vidas e em nossas mentes. É dar acesso a referências que tenham conexão com a sua vida concreta.
A perspectiva decolonial na adoção contribuirá para a superação das lógicas dominantes, dos paradigmas eurocêntricos, trazendo para o cotidiano de crianças e adolescentes o resgate de conhecimentos omitidos historicamente e excluídos pela colonialidade do poder e do saber, criando pontes para conhecer tradições e contribuições do povo negro e dos povos originários do nosso país: suas histórias, sua ciência, suas referências ocultadas, apagadas socialmente. Ou seja, é contribuir para o (re)conhecimento da sua identidade plena. É trazer para o debate da adoção a diversidade do povo brasileiro.