Na África, o orixá Exu pode ser representado em pares masculino e feminino, mas a existência de um feminino ligado a ele ainda é impensável no Brasil
O novo livro da jornalista e cientista da religião Claudia Alexandre, A Exu Mulher e o Matriarcado Nagô: masculinização, demonização e tensões de gênero na formação dos candomblés yorubá-nagô (Editora Aruanda), insere um debate inédito no campo dos estudos sobre as tradições e religiosidades afro-brasileiras em relação ao que foi escrito até aqui sobre o controverso orixá Exu. A obra é baseada na tese de doutorado, defendida em novembro de 2021, eleita a Melhor Tese do Ano, pelo Programa de Ciência da Religião da PUC-SP. Finalista e segunda colocada do Prêmio SOTER/Paulinas de Teses (Prêmio Prof. Afonso Maria Ligório Soares) edição 2022, do Congresso Internacional da Soter (Sociedade de Teologia e Ciência da Religião). Mesmo ano em que lançou o livro-dissertação “Orixás no Terreiro Sagrado do Samba: Exu e Ogum no Candomblé da Vai-Vai”. Ela também é autora de “Crença e Fé de Vivaldo de Logunedé: Um pouco do Candomblé da Baixada Santista” (2006) e “Vai-Vai, o Orgulho do Saracura” (2004).
Na obra recente, o racismo religioso como uma das opressões sociais ganha centralidade com a figura de Exu e reivindica o lado feminino do orixá, algo ainda pouco explorado na literatura sobre a formação dos candomblés de tradição yorubá-nagô, cujos terreiros que cultuam Exu-Legba-Elegbara se autodenominam de nações ketu, jejê ou nagô. Em algumas localidades da África Ocidental são bem conhecidas as representações de Exu como um orixá ambíguo, que pode se apresentar como feminino e masculino, bem diferente da forma como foi introduzido nos terreiros do Brasil. Na capital Salvador a autora percorreu os três terreiros fundantes, que ainda mantém o sistema matriarcal: Casa Branca do Engenho Vellho, Ilê Opó Afonjá e Terreiro do Gantois. O resultado foi a constatação de que, apesar da liderança das mulheres, houve tensões na relação com o orixá Exu, o que exigiu dissimulações e negociações por parte das poderosas iyalorixás,, em relação à dominação da Igreja Católica. A masculinização e a demonização foram as principais transformações que Exu sofreu na travessia atlântica.
Em África, região da iorubalândia, alguns grupos realizam práticas rituais específicas onde figuras de Exu – masculina e feminina – evidenciam as diferenças anatômicas do par: ele com seu falo desproporcional, apito e gorro, e ela com seios e vulva demarcados e à mostra, jóias e, às vezes, acompanhada de outra figura que remete a uma criança. As imagens apresentam penteados alongados, uma marca da identidade do orixá. Em alguns lugares Exu é cultuado exclusivamente por mulheres e está associado não apenas à fertilidade, como à fecundidade e à maternidade.
A questão de gênero e as mulheres de terreiro mostra como as religiões de matrizes africanas também estão na matriz de dominação patriarcal. Para as primeiras mulheres de terreir o. Exu demonizado se transformou em um elemento demonizante.
O destaque dado ao falo na representação da divindade, como símbolo de sua masculinidade, teria excluído completamente os traços de feminilidade. Na cosmogonia iorubá Olodumaré, o Deus supremo, teria lhe constituído com os princípios masculino e feminino, com controle sobre eles, um poder que não foi concedido a nenhuma outra divindade. É ele o senhor do movimento, que mantém o equilíbrio vital e distribui em partes iguais o essencial aos seres viventes, para que haja fertilidade e vida constante dos seus cultuadores.
Ao analisar a definição do papel da mulher como autoridade máxima nos terreiros de candomblé, bem como o trato com Exu e sua masculinidade demonizada, principalmente entre os séculos XIX-XX, a autora destaca uma série de aproximações e rejeições dentro da própria comunidade de axé. Sabe-se que no início havia resistência, por parte de antigas lideranças, em iniciar “filhos” e “filhas” deste orixá, ocorrendo muitos casos de troca pelo orixá Ogum, o grande guerreiro dos metais. As justificativas para tal barganha acabavam por reforçar o imaginário demoníaco imposto à divindade. Esses constrangimentos podem ter levado ao ocultamento e o silenciamento sobre qualquer assunto referente a existência do feminino de Exu.
Chama atenção o fato de a figura feminina de Exu, além de não ter sido introduzida nas representações do orixá nos candomblés nagôs no Brasil, ser desconhecida em algumas casas de culto e um assunto mantido em silêncio nos terreiros mais tradicionais.