Claudia Alexandre é jornalista, sambista e pesquisadora de culturas afro-brasileiras. Mestre e especialista em Ciência da Religião (PUC-SP) e Doutoranda em Ciência da Religião. É Dirigente do Templo da Liberdade Tupinambá (Paraty-RJ). Integrante da Cojira (Comissão dos Jornalistas pela Igualdade Racial). Autora do Livro Orixás no Terreiro Sagrado do Samba – Exu e Ogum no Candomblé da Vai-Vai (Editoras Aruanda e Grito Editora). Instragram: @claualex16
Este artigo propõe uma reflexão sobre às memórias de mulheres negras que constituem a história das tradições das comunidades e povos de terreiros. A abordagem se justifica pelo lugar de invisibilização que ainda se impõe às trajetórias femininas, cujas opressões cotidianas se agravam pelo fato de pertencerem às religiosidades de matrizes africanas. Soma-se a isso, a questão da vulnerabilidade diante do crescente número de ataques e violências, que ampliam a perspectiva da intolerância religiosa e, que hoje, tem sido enfrentado como racismo religioso.
O racismo religioso tem se configurado como um componente do racismo estrutural que afeta preferencialmente, no Brasil, seguidores das religiões denominadas afro-brasileiras: Umbandas, Candomblés, Quimbandas, Xangô, Xambá, Jurema, Tambor de Minas, Nagô, entre outras denominações cujas raízes marcam a ancestralidade negro-africana, mas também ameríndias. Além das expressões religiosas, as expressões lúdicas como samba e capoeira, jongo, samba de roda, maracatu, afoxé, congada, entre outras, também são alvos de violências físicas e simbólicas, principalmente quando se percebe os casos de apropriações de elementos como música, dança, vestuário e da culinária, por parte de segmentos religiosos intolerantes, como conotação de demonização. Um exemplo seria a apropriação de grupos evangélicos do acarajé, comida que guarda associação com a orixá Iansã, por conta de seu alimento votivo, o acará, que na versão evangélica se transformou em “bolinho de jesus”, assim como a capoeira já foi transformada em “capoeira de jesus”.
Foi início do século XX que as religiões de matrizes africanas no Brasil entraram para as narrativas dos principais pesquisadores dos estudos afro-brasileiros. Uma geração de homens brancos, eurocêntricos, boa parte, estrangeira, publicavam o resultado de suas excursões pelos terreiros, em especial na Bahia, questionando as matriarcas sobre os meandros dos candomblés de tradições yorubá, ketu-nagô, jejê-nagô, que eles elegiam como “puros” e verdadeiramente africanos. Eles supervalorizavam as práticas nagôs e classificavam como “degradadas” as práticas de outros cultos, inferiorizando os candomblés de origem banto – angola-congo e também de Caboclo, afetando as tradições negros e negras que restituíram nas Américas formas de se relacionar com a herança ancestral.
É nessa rede de informações, que se construiu um imaginário paralelo, que objetificou ainda mais as mulheres de terreiros, ao vasculhar e expor suas práticas sagradas, sem evidenciar o resultado das lutas, negociações e resistências. Essas mulheres com seus saberes e fazeres garantiram a ressignificação de humanidade e da (re) estruturação das “famílias de santo”. Atitudes que contrariam imaginários de primitivismo e inferioridade negra, elas conseguiram recriar, a partir das memórias ancestrais, o sistema ideal de enfrentamento à sociedade opressora, patriarcal e racista. Mulheres negras se fizeram presente nas lutas e resistências contra a escravidão e nos movimentos abolicionistas e foram determinantes para a criação de redes de solidariedade e sociabilidade que formaram os terreiros de candomblés, reverenciando um passado rompido pelo sistema da escravidão.
O pesquisador Clóvis Moura descreve no Dicionário da Escravidão Negra no Brasil as condições das mulheres em regime escravista, ressaltando que a mulher escravizada era considerada inferior ao homem escravizado, contrariando a informação de que mulheres negras eram exclusivamente preferidas para satisfação dos desejos dos senhores brancos. Os corpos das mulheres negras eram expostos a todas as violências e desmedidos perigos, havendo trabalhos em condições idênticas aos dos homens ou piores. “não havia privilégio, mas pelo contrário, níveis de exploração bem mais acentuados, inclusive a sexual”, enfrentados numa sociedade que nunca as enxergou. A história do Brasil escondeu o nome de muitas mulheres negras que resistiram através do sagrado e construíram sua própria história, sustentando a sabedoria dos ancestrais em condições de desigualdade e garantindo proteção espiritual, de afeto e continuidade com suas comunidades (egbés).
Essas mulheres como líderes religiosas, não podem ser reduzidas a um lugar menor e estático. A ativista Lélia Gonzalez também se preocupava com as opressões sofridas por mulheres de terreiros e ressaltou que as iyalorixás e mães de santo desempenham papel central não apenas religioso, mas também cultural. Mulheres que manipulam recursos naturais, materiais e sempre mantiveram posições de “poder e dominação” entre o terreiro e pessoas brancas e de classe média. Mulheres de linhagem real, negociadoras, comerciantes, mães e carregadas de mistérios, se transformaram em vários períodos da história como a única via de acesso do povo negro à sociedade dominantes. Assim deixaram suas marcas Mãe Aninha, Mãe Senhora e Mãe Stella de Oxóssi (Opó Afonjá), Mãe Meninha do Gantois (Terreiro do Gantois), Maria Neném (Tumba Junçara), na Bahia; Mãe Manodê (Terreiro Santa Bárbara), Mãe Sylvia de Oxalá (Ilê Axé Obá) e Mãe Sandra Epega (Ilê Leuaito), em São Paulo; Mãe Beata de Yemanjá (Ilê Omiojuarô).
Memórias que ainda permanecem na vitalidade de Mãe Meninazinha de Oxum (Ilê Omolu Oxum), Mãe Carmem (Terreiro Gantois), Mãe Ana de Xangô (Opó Afonjá), Mãe Neuza de Xangô (Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho), Mãe Juju D’Oxum (Ilê Maraqueto Axé Oxum) e Mãe Kabeca (Terreiro Fanti Ashanti) e tantas mulheres negras que estão à frente de muitos terreiros pelo Brasil. -Essas resistências marcam memórias de negociações, com perdas e ganhos, 2013, p. 148-
Resistência pelo sagrado é um conceito do professor Edmilson de Almeida Pereira: o sagrado, entendido também como caixa de ressonância das tensões sociais, oferece meio para que o devoto articule a sua compreensão dos fatos, considerando os valores do seu grupo e a interferência das informações exteriores. (PEREIRA, 2005, p. 404). como as aproximações que se fizeram necessárias com a Igreja Católica, após um processo de violências e perseguições. Uma relação que estabeleceu o fenômeno do “sincretismo” ou “junção”, que permitiu a formação das irmandades negras, como um importante braço político para a organização dos candomblés na Bahia. Mas também possibilitou as que religiosidades negras circulassem pelas ruas, muitas vezes alternando a devoção aos orixás e santos católicos, que permanecem em festas do calendário popular com louvações à São Cosme e Damião, São Jorge, Santa Bárbara, São Lázaro, São Sebastião, São Pedro, Nossas Senhoras e Nosso Senhor do Bonfim, presentes em celebrações e “obrigações” a Ibeji, Ogum, Iansã, Obaluayê-Omulu, Oxóssi, Xangô, Oxum, Yemanjá e Oxalá. Além da relação com Exu, tensionada pelo processo de demonização e a associação com o diabo-cristão.
É justamente a demonização do orixá Exu, o mensageiro, ambíguo e mais controverso das divindades yorubá-nagô, que tem sido usada ao longo do tempo, para inferiorizar práticas e tradições de matrizes africanas, bem como mulheres negras e homens negros. Somente no ano de 2020, o número de denúncias de intolerância religiosa aumentou em 56% no Brasil.
Estes dados são do relatório do Disque 100, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Este serviço representa uma política pública de controle de casos de violações de direitos humanos, incluindo intolerância religiosa e apurou que os maiores reclamantes são seguidores da Umbanda e do Candomblé, contra ataques de neopentecostais, em sua maioria. No primeiro semestre de 2019, foram 2.722 casos de intolerância religiosa – uma média de 50 por mês. No âmbito criminal torna-se alarmante a quantidade de terreiros de Umbanda e Candomblé depredados, invadidos e expulsos de suas sedes, com agressão de sacerdotes e sacerdotisas de seus espaços sagrados, com participação até mesmo do crime organizado.
Nesse 25 de julho, quando se comemora do Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha lembremos também de Mãe Gilda de Ogum, que se tornou símbolo nacional do Dia de Combate à Intolerância Religiosa, no dia 21 de janeiro. Sua morte ocorrida em 2007, em decorrência de um ataque cardíaco, provocado por ofensas e ataques que recebeu de um grupo de evangélicos, é apenas um dos desfechos trágicos que o racismo religioso tem provocado.
Mãe Gilda, Gildásia dos Santos, yalorixá do terreiro Ilê Axé Abassá de Ogum, localizado em Itapuã, na cidade de Salvador, foi covardemente agredida verbalmente e teve seu terreiro invadido por membros da Igreja Universal do Reino de Deus, de confissão neopentecostal, a mesma do Bispo Edir Macedo, dono do Grupo Record. A TV que foi condenada na justiça a conceder Direito de Resposta às religiões de matrizes africanas, em 2018. Os programas veiculados pela emissora transformaram iyalorixás e babalorixás em “mães de encosto” e “pais de encosto”. A vitória na justiça veio depois de mais de 15 anos de briga nos tribunais de São Paulo e um prejuízo incalculável para a imagem dos sacerdotes e principalmente, sacerdotisas de matrizes africanas. O processo foi conduzido pelos juristas Hédio Silva Júnior, Antônio Basílio Filho e Jader Macedo Júnior.
Para além das lutas atuais, é preciso evidenciar que os desafios se atualizam na medida em que mulheres negras são pilares destas expressões religiosas e guardiãs desta cultura ancestral. A condição de mulheres negras no estrato social e seus enfrentamentos por equidade e igualdade de oportunidade também atingem mulheres de terreiros e suas subjetividades. São mulheres cujas especificidades devem estar incluídas nas pautas por políticas públicas e de reivindicação por plenos direitos. Axé iyás!