Elisiane Santos é Procuradora do Trabalho, membra do Grupo de Trabalho Povos Originários, Comunidades Tradicionais, Quilombolas, de Terreiro, Ribeirinhas e Periféricas e do Grupo de Estudos Escravidão, gênero e racismo do Ministério Público do Trabalho. Doutoranda em Sociologia e Direito pela UFF. Mestra em Filosofia pelo Instituto de Estudos Brasileiros-USP.
Mulheres negras são o símbolo da força, resistência e luta por trabalho digno na nossa história. O Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra, instituído através da Lei n° 12.987/2014, também Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, teve origem no 1º encontro de mulheres negras ocorrido no ano de 1992, na cidade de Santo Domingos, República Dominicana. A data foi reconhecida pela ONU como marco na luta contra as opressões de raça e gênero. Desde então integra a agenda dos movimentos de mulheres negras no Brasil, América Latina, Caribe e no mundo.
Constitui mobilização fundamental para a visibilidade da contribuição das mulheres negras, indígenas, quilombolas, periféricas, de terreiro na sociedade brasileira, bem como para o enfrentamento das violências contra estas praticadas, a começar pela tentativa de apagamento da memória das lutas por liberdade protagonizadas pelas trabalhadoras negras escravizadas[1], passando nos dias atuais pela violência de gênero e pelo racismo, que se produz e reproduz na sub-representação feminina negra nos espaços institucionais, nas desigualdades no acesso ao trabalho e demais direitos fundamentais.
Importante destacar que o princípio da igualdade, do qual decorre o da não-discriminação, constitui fundamento do Estado Democrático de Direito brasileiro, instituído pela Constituição Federal de 1988, e estabelece em seu artigo 5º, caput “que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Tal princípio deve ser materializado através de ações e políticas afirmativas, como estabelece o Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288/2010), que considerem as interseccionalidades de gênero e raça, a fim de que se efetivem plenamente os direitos sociais à moradia, saúde, educação, trabalho, entre outros, às mulheres negras, indígenas, quilombolas, de terreiros, ribeirinhas, periféricas e todas as que se encontram em situação de discriminação e desvantagem histórica.
Muito embora o Estado brasileiro tenha se comprometido na legislação nacional e internacional[2] a eliminar a discriminação de raça e gênero na sociedade, os indicadores sociais demonstram que as mulheres negras se mantêm na base da pirâmide social, acumulando os mais baixos salários[3], jornadas de trabalho mais longas, assumem a responsabilidade por cuidados familiares, estão inseridas em maior proporção no trabalho informal e de forma precarizada. São as mulheres negras que sofrem maior violência obstétrica[4], assédio no trabalho[5], feminicídio[6] e também estão sub-representadas nos espaços de poder no Executivo, no Legislativo e no sistema de Justiça[7].
Nesse sentido, o Projeto Àwúre[8], realizado pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), Organização Internacional do Trabalho (OIT) e Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), busca promover o diálogo sobre direitos dos povos indígenas, comunidades tradicionais (quilombolas de terreiros de religiões de matriz africana e ribeirinhas) e comunidades periféricas, com um olhar interseccional para as questões de gênero, raça, e geracional, bem como fortalecer iniciativas na área da educação, trabalho e renda nas comunidades. E, portanto, fortalecer a luta das mulheres negras, indígenas, quilombolas, ribeirinhas, de terreiro, periféricas, por direitos.
Essa luta simbolizada no dia 25 de Julho marca a memória das que vieram antes e de todas que seguem lutando por direitos, pelo bem-viver, por uma sociedade livre de racismo, sexismo e justiça social para todas as mulheres. No manifesto da Marcha das Mulheres Negras de São Paulo no ano 2020 a construção de uma sociedade pautada no princípio do bem-viver, coloca como central o bem-estar coletivo, a partir de uma reconexão com os conhecimentos ancestrais e com as múltiplas possibilidades de vida.
Além disso, o manifesto coloca a diversidade e pluralidade das mulheres negras latino-americanas ou amefricanas, adotando expressão cunhada por Lélia Gonzalez, também como centrais: “Somos mulheres negras, indígenas, lésbicas, bissexuais, trans e travestis, quilombolas, ativistas e ciberativistas, jovens, idosas, estudantes, educadoras, donas de casa, militantes, artistas, desempregadas, profissionais liberais, profissionais do sexo, servidoras públicas, comunicadoras, professoras, catadoras de recicláveis, profissionais de saúde, defensoras de direitos humanos, parlamentares, jornalistas, católicas, protestantes, de terreiro, sem religião, mas com fé na força de cada uma de nós”.
“Rainha Tereza”, como ficou conhecida Tereza de Benguela, em seu tempo, viveu na década de XVIII no Vale do Guaporé, no Mato Grosso. Segundo os registros históricos, ela comandou uma comunidade de três mil pessoas. Uniu negros, brancos e indígenas para defender o território onde viviam, resistindo à escravidão por mais de 20 anos. Comandou a estrutura política, econômica e administrativa da comunidade, criando uma espécie de parlamento. O Quilombo de Quariterê existiu de 1730 a 1795, e a liderança de Tereza de Benguela resistiu até 1770[9], quando foi presa e morta pelo Estado, segundo historiadores.
Como Tereza são inúmeras as mulheres negras, indígenas, quilombolas, periféricas, de terreiro, lideranças nas suas comunidades, na luta por direitos, por trabalho digno, por Justiça. Na impossibilidade de trazer a memória todas elas, reverenciamos nesse artigo algumas dessas mulheres trabalhadoras, referências nas lutas históricas pela conquista de direitos: Luísa Mahin, africana escravizada, quituteira, referência histórica na Revolta dos Malês (1835) e Sabinada (1837), mãe de Luís Gama; Esperança Garcia, escravizada, primeira advogada no Brasil, conforme registros que apontam ter em 1770 escrito uma carta ao governador da província do Piauí, denunciando violências que sofria no cativeiro; Laudelina de Campos Melo, filha de escravizada, trabalhadora doméstica desde os oito anos, fundou a primeira associação de trabalhadoras domésticas no Brasil, no ano 1936, na luta por melhores condições de trabalho; Helenira Rezende, líder estudantil, jogadora de basquete, lutou contra a ditadura militar e na Guerrilha do Araguaia, foi capturada numa emboscada, torturada e morta, é considerada desaparecida política desde 1972; Xica Manicongo, africana escravizada, transgênero, sapateira, vestia roupas femininas, enfrentando as normas de cisgeneridade ainda no século XVI; Mãe Stella de Oxossi, yalorixá, iniciada no candomblé aos 14 anos, enfermeira, escritora, símbolo da luta das mulheres negras líderes religiosas, homenageada com o título de Doutora Honoris Causa pela UFBA e UESB e integrante da Academia de Letras da Bahia; Baku Sateré-Mawé, tuxaua e pajé, matriarca, professora e parteira, morreu aos 65 anos na aldeia que fundou à margem do rio Ariaú, afluente do rio Negro, município de Iranduba/AM, uma das pioneiras no protagonismo feminino no movimento indígena.
Como elas e como tantas outras na história, muitas mulheres nas periferias, nas escolas, nas instituições, nos movimentos sociais, na política, nos mais diferentes espaços, às vezes de forma silenciosa constroem no dia-a-dia estratégias de sobrevivência, resistência e novas forma de luta. E por isso o 25 de Julho é uma data fundamental para o respeito, valorização e memória da participação e contribuição das mulheres negras na construção da sociedade brasileira, das que vieram, das que aqui estão e das gerações que virão. Salve Tereza de Benguela! Salve nossas ancestrais! Salve mulheres negras, indígenas, quilombolas, de terreiros, ribeirinhas, periféricas! Àwúre!
[1] https://www.geledes.org.br/17-mulheres-negras-brasileiras-que-lutaram-contra-escravidao/<Acesso em 19/07/2021
[2] A Constituição Federal, em seu artigo 7º inciso XXX, ainda, proíbe diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil. E elenca como objetivos do Estado Democrático a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, que garanta o desenvolvimento nacional, visando à erradicação pobreza, da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º).
Além disso, o Estado brasileiro ratificou a Convenção nº 111 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), segundo a qual a discriminação consiste em toda distinção, exclusão ou preferência fundada na raça, cor, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou de tratamento em matéria de emprego ou profissão, bem como é signatária da Convenção 169 da OIT sobre povos indígenas (1989), da Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial (1966), da Declaração e Plano de Ação da Conferência Mundial contra o racismo, a xenofobia e intolerâncias correlatas (2001), da Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher (2013) e da Convenção Interamericana contra o racismo, a discriminação racial e formas correlatas de intolerância (2020).
[3] Dados do IBGE mostram que as mulheres brancas ganham 70% a mais que as negras. Enquanto a média salarial das brancas é de R$ 2.379 a das negras é de R$ 1.394, o menor salário na comparação entre mulheres brancas, homens negros (R$ 1.762) e homens brancos (R$ 3.138). As condições de vida das mulheres brancas também são superiores as das negras, evidenciando a necessidade de políticas públicas para essa parcela da população feminina. Enquanto 9,4% das brancas não têm acesso ao abastecimento de água, esse percentual é de 13,9% entre negras. No quesito coleta de lixo, a diferença entre brancas e negras é de, respectivamente, 3,7% e 8,8%. Quanto ao adensamento excessivo, que é a ocupação de um espaço por um número maior de pessoas do que o indicado, 7,7% das brancas sofrem com essa situação em comparação a 11,9% das negras. https://midia4p.cartacapital.com.br/mulheres-brancas-ganham-70-a-mais-que-as-negras-diz-ibge/<Acesso em 19/07/2021
[4] https://www.abrasco.org.br/site/noticias/8m-mulheres-negras-sofrem-mais-violencia-obstetrica/45463/
[5] https://revistamarieclaire.globo.com/Mulheres-do-Mundo/noticia/2020/10/mulheres-negras-sao-principais-vitimas-de-assedio-sexual-no-trabalho.html
[6] https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2020/09/16/mulheres-negras-sao-as-principais-vitimas-de-homicidios-ja-as-brancas-compoem-quase-metade-dos-casos-de-lesao-corporal-e-estupro.ghtml
[7] https://jornalggn.com.br/artigos/mulheres-negras-no-ministerio-publico-brasileiro-por-justica-social-e-efetiva-representacao-da-sociedade-por-elisiane-dos-santos/amp/<Acesso em 19/07/2021.
[8] Saiba mais sobre o Projeto Àwúre: https://www.awure.com.br/o-projeto/
[9] https://www.brasildefato.com.br/2020/07/28/artigo-a-luta-de-tereza-de-benguela-e-as-mulheres-da-resistencia