O Novembro Preto é um mês voltado à reflexão e ao engajamento na luta antirracista para destacar a importância da Consciência Negra no Brasil. Neste mês, celebramos a riqueza da cultura afro-brasileira, honramos a resistência histórica do povo negro e, simultaneamente, lutamos para diminuir os desafios contemporâneos ligados à discriminação racial. Assim, a sociedade é convidada a ampliar sua compreensão sobre as questões que permeiam a vivência da população negra no país, promovendo a conscientização e fomentando diálogos construtivos sobre a igualdade racial. Dentre as maiores dificuldades enfrentadas pelo povo preto no Brasil, está o racismo religioso, uma onda crescente de intolerância que revela as camadas sistemáticas de violência às quais estão expostas essas pessoas.
Intolerância e diversidade religiosa no Brasil
No cenário multicultural e multiétnico do Brasil, conhecido por sua riqueza e diversidade, o racismo religioso continua latente. O Brasil é feito de múltiplas crenças e práticas espirituais, onde o sincretismo religioso se manifesta em celebrações e rituais únicos. No entanto, esse mosaico colorido muitas vezes é manchado pela discriminação, atingindo especialmente as religiões de matriz africana, como o Candomblé e a Umbanda.
A estigmatização dessas práticas religiosas revela mais que um reflexo da ignorância, mas também uma das facetas mais violentas do racismo e uma das formas mais comuns de ataque à cultura e a existência negra no Brasil. As religiões de matriz africana, historicamente associadas às comunidades afro-brasileiras, enfrentam desafios significativos, que chegam ao extremo da violência física em alguns casos. A falta de conhecimento e ideais fundamentalistas acerca dessas religiões são parte importante do processo de invisibilização do povo preto.
Para o delegado Joaquim Adorno, que é referência no enfrentamento do racismo religioso no Brasil, o mês da consciência preta é essencial para a desconstrução do mito da igualdade racial no Brasil: “Ainda vivemos o reflexo do mito da democracia racial, que pressupõe que as pessoas de todas as cores são materialmente iguais, que as religiões são tratadas da mesma forma, independente de quem cultua. Essa concepção de parte da sociedade faz com que o problema do racismo estrutural –do racismo religioso –, não seja visto da forma que deve ser vista, que ele não seja trabalhado da forma que deve ser trabalhado”, pontua.
Segundo dados do II Relatório sobre Intolerância Religiosa: Brasil, América Latina e Caribe, publicação organizada pelo Centro de Articulação de Populações Marginalizadas e pelo Observatório das Liberdades Religiosas, com apoio da Representação da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) no Brasil, houve um aumento dos casos de intolerância religiosa no país. Os dados alarmantes revelam um cenário desafiador, com uma média de 3 denúncias de intolerância religiosa por dia no ano de 2022, um número significativo de incidentes registrados em todo o país, que tem as religiões de matriz africana e indígena como as mais afetadas por ataques físicos, profanação de templos, estigmatização e discriminação em diversas esferas da sociedade. Esse aumento nos casos de intolerância religiosa destaca a urgência de medidas efetivas para combater esse fenômeno, incluindo a implementação de políticas públicas, campanhas de conscientização e a promoção do diálogo inter-religioso como ferramentas essenciais na construção de uma sociedade mais inclusiva e respeitosa com a diversidade espiritual presente no país. Dados do relatório “Respeite o meu Terreiro”, da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (Renafro), que entrevistou 255 lideranças religiosas em todo o território nacional em 2022, revelou que quase a totalidade dos entrevistados confirmaram já ter sofrido algum tipo de intolerância. Segundo dados do portal Disque 100, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, foram registrados 477 casos de intolerância religiosa em 2019, 353 casos em 2020 e 966 casos em 2021. Os dados também mostram que os Estados do Sudeste, os mais populosos do Brasil, despontam como os que apresentam maior número de casos, contrapondo-se aos Estados do Norte e Centro-Oeste, que apresentaram menor número.
Para o delegado Adorno, o problema do racismo religioso é ainda mais profundo do que parece, pois se entrelaça ao modo de vida de quem o pratica: “Quando você lida com essa realidade, você lida com um sentimento de desumanização do outro, construído em todos os grupos sociais, que reforçam a violência entre si”. A ideia dicotômica de bem versus mal, reforçada por vertentes fundamentalistas, também impacta o modo de considerar a diversidade religiosa no Brasil, o que adiciona mais uma camada de complexidade ao problema: “Uma das características mais marcantes do racismo religioso é a de que a pessoa que pratica isso, acredita que está certo. Tudo que ele faz é balizado por esse entendimento de mundo. Por isso o racismo religioso é tão perigoso”, finaliza. Adorno destaca ainda que a intolerância religiosa é quase sempre autojustificada: “A pessoa que pratica essa conduta, tem toda a certeza de que está certa. De que a conduta dela é justificada perante o Deus dele. Isso é muito ruim, porque se ela se sente certa, ela não vai mudar nunca”.
A luta contra o racismo envolve um esforço conjunto entre poder público, sociedade civil e organizações representativas, que culmine em um engajamento antirracista no dia a dia das pessoas, através da educação, do letramento racial, de políticas públicas e de punições mais severas a casos de racismo. Por isso a importância de projetos educacionais, como o Àwúre, de campanhas institucionais de conscientização e do diálogo inter-religioso, como ferramentas para desmontar estereótipos e promover a compreensão entre diferentes camadas da sociedade.
Mesmo sendo um país laico, o Brasil ainda tem o cristianismo simbolicamente enraizado em todas as suas instituições. Ao avaliar o papel estatal, Joaquim Adorno destaca que a desconstrução do racismo religioso parte de uma concepção de uma nova cultura e de uma nova educação: “Temos que trabalhar com a prevenção, que é a educação, e com a punição de quem pratica, que também tem um papel educativo. A realidade é que, hoje, o Estado falha muito, porque dá apoio institucional para determinadas denominações. Há uma percepção de que o Estado apoia formalmente algumas religiões, enquanto desacredita outras. E isso é muito grave”, alerta.
A construção de uma sociedade que valoriza e respeita todas as expressões de fé é fundamental para garantir um futuro onde a diversidade religiosa seja celebrada, e não alvo de discriminação e violência. À medida que o tempo passa, é imperativo que haja uma união entre Estado, sociedade civil e organização representativas se unam na luta antirracista, contra a intolerância religiosa, trabalhando para conferir efetividade ao conceito de igualdade presente na Constituição, onde a diversidade de crenças seja verdadeiramente respeitada e protegida.
O Novembro Preto é mais do que um mês no calendário; é um período de união e ação, lembrando-nos de que a luta contra o racismo é uma responsabilidade coletiva que transcende fronteiras étnicas e culturais.