Fevereiro, o mês do Carnaval – a maior festa popular do Brasil, em que há muita alegria, música, diversão. Aproveitando a forte influência da música, o Àwúre, iniciativa do Ministério Público do Trabalho (MPT), Organização Internacional do Trabalho (OIT) e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), dá asboas-vindas e abre espaço para artistas que fazem parte das populações e temáticas abordadas pelo Canal. Nesse espaço, artistas falam sobre o trabalho e a luta para se destacarem no cenário musical.
Ane Êoketu, nasceu em Aracaju, no estado do Sergipe, mas quando ainda era criança seus pais se mudaram para Brasília. Assim, cresceu em São Sebastião, periferia do Distrito Federal, onde vive até hoje.
Em entrevista para o Àwúre, a percussionista, cantora, compositora e apaixonada pela cultura popular brasileira, Ane Êoketu fala sobre sua trajetória e compartilha sobre o processo de criação do seu mais novo álbum “Eu já passei pelo fogo”.
“O que eu tento transmitir com o meu trabalho é a potência criativa revolucionária da cultura negra e periférica e reverenciar isso como uma grande sorte, uma riqueza” – Ane Êoketu
Àwúre: O que o público pode esperar desse novo trabalho “Eu já passei pelo fogo”?
Ane: Esse trabalho é bem dinâmico, exploramos muitos ritmos e muita brasilidade dentro dele, então o que o público deve esperar é bastante ousadia (rsrs) e diversidade. Acredito também que, assim como nossas vivências e “fogueiras” são diversas, a experiência de ouvir o “Eu Já Passei Pelo Fogo” seja muito subjetiva. Sinto que ele traz um movimento de se voltar para dentro. É dá pessoa para com o que ela tem de único e só ela pode revelar ou transformar.
Àwúre: O álbum é composto por canções que sempre trazem alguma mensagem. Gostaria de saber, qual a sua relação com as letras das canções?
Ane: Todas as canções do álbum atravessam minhas vivências, seja como mulher preta e periférica, seja como uma mulher lésbica, seja como uma mulher artista e nordestina, enfim. Todas me atravessam e a maioria das minhas composições parte de um recorte de vida pessoal, social, emocional, amorosa, etc. Ou seja, é aquilo que falei sobre o que só a gente pode revelar de nós mesmos.
Àwúre: Como um todo, o álbum tem algum conceito? Qual a canção que mais define a ideia do trabalho.
Ane: Sim, a concepção ideológica do álbum é sobre tentar transcender acolhendo os altos e baixos, por isso ele é tão dinâmico. Fala sobre as forjas da vida, trazendo as questões político-sociais que remexeram o Brasil nesses últimos anos, mas também falando sobre o fogo das paixões, das relações, das solidões, daquilo que atravessa, do que “queima e abrasa o peito”. É sobre abandonar as cascas que não nos cabem mais e se dar a oportunidade de se refazer com um olhar mais paciente sobre si mesmo. De todas as canções do álbum, apenas três não são de minha autoria, mas acredito que foram feitas para ele mesmo antes de eu pensar em criá-lo. A música que para mim mais define esse conceito é justamente umas dessas. Pólen é a oitava faixa do álbum, ela é uma composição de Ícaro Farias e Léo Maré, dois grandes amigues, e na minha interpretação ela é a que mais define esse conceito.
Àwúre: A parte rítmica do álbum chama muito a atenção, por ser algo leve e que traz em alguns momentos, partes animadas, eufóricas e empolgantes, além de uma brasilidade e religiosidade… comente sobre!
Ane: Contraste dinâmico
Busquei explorar esses contrastes justamente para não ser somente aquilo que se espera. Criamos timbres misteriosos em atmosferas mais suspensas na intenção de fisgar o ouvinte, reter a atenção e no final explodir tudo, como na faixa TOADA. É como assistir um gol do Brasil na copa (rsrs), a gente fica alí atento a cada drible, a cada palavra que o locutor diz e no final vem aquela explosão de emoções. (rsrs) Brincadeiras adentro, a ideia é essa mesmo, trazer o imprevisível como característica sonora, desnortear e, simultaneamente, excitar, aquecer, relaxar, etc.
Àwúre: Uma das minhas músicas favoritas do novo álbum é “Temperamento” e eu gostaria de saber se você também tem uma favorita?
Ane: Já tive várias favoritas e com o tempo vou mudando. (rsrs) No momento minhas favoritas são VEM FOGO e PÓLEN. Vem Fogo foi a última que compus para esse trabalho. A ideia dessa letra era escrever sobre uma “vingança da cultura popular brasileira” contra toda tentativa de desmonte e apagamento que sofreu nos últimos anos. É a revolta das lendas vivas no ritmo quente de um galope, rsrs. Pólen para mim tem uma atmosfera e arranjo incríveis, além de, como eu já disse, na minha interpretação, ela sintetiza o conceito do álbum.
Àwúre: Você tem alguma história ou curiosidade interessante para nos contar a respeito do álbum?
Ane: Tenho uma história super curiosa e que foi uma experiência inesquecível. Bem, o processo criativo do álbum se passou enquanto vivíamos a pandemia, em 2020/2021. Neste momento eu ainda não sabia qual seria o nome do álbum nem a estética, mas eu já tinha o conceito. Foi um processo muito íntimo e eu fiquei totalmente imersa e super sensível a essa criação. Era comum, por exemplo, eu dormir e sonhar com ideias de letras ou arranjos, (e chegou a acontecer algumas vezes em que consegui acordar e anotar ou gravar esses insights). Enfim, o mundo passava pelo caos pandêmico e processos de vida e morte, acredito que não somente da carne e do corpo físico, mas em vários outros aspectos e dimensões também. Para contextualizar rapidamente, nas religiões de matriz africana cultuamos o orixá Omolu, sendo a divindade que detém o domínio da cura e das enfermidades, da morte e da vida. Para além da questão pandêmica, acredito que a energia desse orixá estava muito próxima também por conta de uma questão de saúde que minha mãe passa há alguns anos. Então uma noite eu sonhei que estava no terreiro e me chamaram para cambonar, auxiliar a cuidar das entidades e orixás. Eu entrei no quarto para vestir o Omolu. Fazia o silêncio mais absoluto do mundo e eu o vestia sem olhar diretamente para ele e sem falar nada. Ele era um velho, mas muuuito velho. A pele dele esfarelava de tão velhinha. De repente eu perguntei para ele, em pensamento, se eu poderia presenteá-lo e ele, em pensamento, disse que sim. Eu tirei do bolso um brinco de pena furta-cor verde e azul, lindo, e coloquei na orelha dele. Assim que fiz isso, minha mão começou a pipocar e a subir pipoca pelo meu braço até se espalhar pelo corpo todo. Para quem não sabe, a pipoca é um elemento utilizado por esse orixá por conta de sua simbologia de transformação. É o milho que ao passar pelo fogo se transforma. E foi daí que surgiu toda estética do álbum e o seu título.
Àwúre: Ane, como é passar pelo fogo?
Ane: Desconfortável. É ter que lidar com seus erros, suas ansiedades, suas sombras para transmutá-las. É ter que tomar consciência das suas limitações e respeitá-las. Entender o que é viável e o que não é. Mas, conseguindo atravessar isso, nos tornamos muito mais maduros e apropriados de si e do que é capaz.
Àwúre: Quais são suas referências musicalmente?
Ane: A cultura popular brasileira, as expressões culturais de rua e do povo, sobretudo as que têm origem no norte e nordeste. A música negra nordestina, posso citar Cátia de França, Carlinhos Brown, Gilberto Gil, o carnaval, as folias, o arrocha, o pagodão, etc.
Fique à vontade para falar algo que eu não perguntei e que você gostaria de ter dito.
Ane: Bem, gostaria de agradecer pelo convite e oportunidade de contar um pouco sobre minha história, carreira e também sobre os processos do álbum. Obrigada por essa porta valiosa aqui no Canal Àwúre e que vocês possam continuar a oferecer esse espaço para mais e mais artistas. Eu Já Passei Pelo Fogo tá no mundo. Escutem aí e me digam o que acharam. Forte abraço, nos encontramos por aí.
Qr code do álbum:
O Àwúre, iniciativa do Ministério Público do Trabalho (MPT), da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), agradece e reverência quem leva na arte a cultura e tradições dos povos originários e das comunidades tradicionais.