Wagner Vinhas é mestre em Ciências Sociais, com concentração em Sociologia.
Doutor em Antropologia com concentração em Estudos Étnicos e Africanos. Professor
de Sociologia no Instituto Federal da Bahia (IFBA).
No bairro Rio Vermelho, em Salvador, estado da Bahia, no dia 2 de fevereiro, é realizada a expressiva festa em homenagem à rainha do mar, Yemanjá, Janaina ou, simplesmente, Iemanjá. O bairro, além da extraordinária história da mulher do rabo de peixe, também guarda outros mistérios: o “Homem do Fogo”, o Caramuru, uma lenda envolvendo o náufrago, Diogo Álvares Corrêa (cuja história dá origem às demais histórias sobre o surgimento e a organização do bairro); a possível aparição de Nossa Senhora de Sant’Anna, avisando aos pescadores da aproximação das tropas lusitanas, em 1822, permitindo que os trabalhadores do mar se lançassem ao oceano antes da chegada do batalhão. ¹ Em “Mar morto”, Jorge Amado (2008) inicia o romance com um mistério, a lenda da mulher que circunda o mar em noites de lua cheia:
“Agora eu quero contar as histórias da beira do cais da Bahia. Os velhos marinheiros que remendam velas, os mestres de saveiros, os pretos tatuados, os malandros, sabem essas histórias e essas canções. Eu as ouvi nas noites de lua no cais do mercado, nas feiras, nos pequenos portos do Recôncavos, junto aos enormes navios suecos nas pontes de Ilhéus. O povo de Iemanjá tem muito que contar… Mesmo quando esse homem ama essas histórias e essas canções e vai às festas de D. Janaína, mesmo assim ele não conhece todos os segredos do mar. Pois o mar é mistério que nem os velhos marinheiros entendem.” (p.05)
O interesse pelas festas ocupa o repertório de áreas como Antropologia, História Cultural e Sociologia. As teorias da festa se dividem em duas vertentes: 1) aquela que considera as festas como uma das dimensões da vida social e, por isso, uma continuidade dos dramas, conflitos e tramas do dia a dia; 2) e a que encara a festa enquanto suspensão da ordem vigente e, portanto, uma mudança radical no modo como vivemos o cotidiano. As festas podem ser de cunho civil ou religioso. Na Bahia, por exemplo, a Festa do 2 de Julho e a de 7 de Setembro são festividades civis, enquanto que a Festa de Santa Bárbara, a Festa do Nosso Senhor do Bonfim e a Festa de Iemanjá são festas religiosas.
A organização das festas civis fica a cargo do poder público, a União, os órgãos do Estado da Bahia, enquanto as demais são organizadas por grupos privados – associações, irmandades, agremiações – em sua maioria formados pelas baixas camadas e marginalizados. As festas cívicas são marcadas pelo tempo cronológico e histórico, repletas de solenidades e acontecimentos diurnos, com espaços bem delimitados; as festas religiosas se relacionam com o tempo cósmico e cíclico, com o mundo do sagrado, o divino, o sobrenatural.
Na Bahia, as festas religiosas estão vinculadas, tradicionalmente, com entidades africanas e católicas: assim, Santa Bárbara é homenageada com Iansã, bem como o Nosso Senhor do Bonfim com Oxalá. Mas, como será demonstrado, na Festa de Iemanjá não há nenhum santo católico relacionado ao orixá e isto é algo incomum neste tipo de festividade.
No Brasil, os primeiros trabalhos sobre as festas datam do século XIX, momento em que se busca preservar as manifestações culturais como um dado da nacionalidade: tradições, crenças e valores de um povo.
1 Para saber mais sobre a história do Caramuru, consultar os trabalhos citados nas referências: Cristina Costa (2011) e Federico Calabrese (2013); sobre a história da aparição de Nossa Senhora de Sant´Anna, consultar Edilece Souza Couto (2004), Cristina Costa (2011) e Tatiane Maria Damasceno (2015). Revista do Corpo Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UnB EM TEMPO DE HISTÓRIAS | Brasília-DF | n. 40 | pp. 22-34 | jan./jun. 2022. ISSN 2316-1191
Os primeiros trabalhos, influenciados por cronistas e botânicos, seguem a perspectiva folclorista de abordar e interpretar estes fenômenos sui generis. No século XX, com os modernistas e os primeiros trabalhos sociológicos, o interesse se volta para o impacto da urbanização, da miscigenação, da aculturação e da migração, ou seja, temas que estão em voga na sociologia em geral. Desde lá, circulam termos como sincretismo, para falar das festas religiosas; fusão, para abordar o campo da música; e, hibridação, com a proliferação dos Estudos Culturais.
A renovação desses estudos partiu do interesse da nouvelle historie pela politização das práticas da vida cotidiana e pelas novas formas de sociabilidade da vida privada e pública (JANCSÓ & KANTOR, 2001). Ao longo do tempo, novas abordagens procuraram oxigenar os estudos sob a perspectiva dos campos simbólico, estrutural e historiográfico. Entre eles, destacam-se o trabalho de Michael Bakhtin sobre as formas de carnavalização das culturas populares, a dimensão performativa dos dramas sociais de Victor Turner, o diálogo com a história (Norbert Elias), a política (Ernest Kantorowicz) e o social (Jose Maravall).
O crescimento das pesquisas, no Brasil permitiu acumular evidências advindas da literatura de viagens, das memórias, dos romances, dos panegíricos, das fontes judiciárias e criminais, documentos cartoriais, recenseamentos, fontes eclesiásticas, documentação iconográfica, objetos da cultura material e registros da memória oral e gestual.
Inicialmente, podemos dizer que as festas estão relacionadas com o extraordinário (DA MATTA, 1990; PRIORE, 1994, BURKE, 1995; JANCSÓ & KANTOR, 2001; CAILLOIS, 2015). Trata-se do que Peter Burke (1995) denominou de “mundo virado de cabeça para baixo”. São ocasiões marcadas por mudanças comportamentais, impulsionadas pela suspensão das convenções sociais, pela inversão espacial e temporal dos acontecimentos e pela trégua temporária das rígidas hierarquias do dia a dia. “O período sagrado da vida social, de todo modo, é precisamente aquele em que as regras são suspensas e a licença recomendada”, escreve Caillois (2015, p.17).
As festas populares, no Brasil, estão historicamente relacionadas com as comemorações católicas de tradição ibérica. Ao longo dos séculos, a Igreja deteve o controle das festas e as organizou em torno do ano eclesiástico: homenagens, data e local dos festejos. A Igreja, desde os anos da colonização, se transformou em cenário para sociabilidade, admitindo, muitas vezes, a religiosidade popular, mesclando o sagrado com o profano. Com o passar dos anos, sofreu competição de novos agentes – associações, irmandades, Estado – na hora de definir personagens, músicas, performances e gestos.
O Estado Moderno se caracteriza pela exposição pública dos signos e símbolos de poder. Portanto, desde a sua formação é possível notar uma constante tentativa de controlar as formas de sociabilidade em que os laços – sociais, comunitários – são demonstrados e reafirmados. Isso ocorre porque os rituais, como os ritos festivos, podem servir ao propósito de promover a identidade social e construir o caráter que se deseja dela. É neste sentido que as festas podem ser meios fortes para penetrar na cultura, na ideologia dominante e, por fim, no sistema de valores de uma sociedade (JANCSÓ & KANTOR, 2001).
Através de uma aliança civilizatória com o Estado Moderno, a Igreja fez tentativas de excomungar das festividades públicas o que Nina Rodrigues (2010) denominou por “sincretismo religioso”. É o que ocorreu com a Festa do Rio Vermelho, na década de 1930, quando ainda era organizada com as comemorações à Nossa Senhora das Candeias, no dia 2 de fevereiro. Pela manhã, os pescadores acompanhavam a cerimônia católica e, à tarde, faziam a entrega do presente à Iemanjá. Em uma ocasião festiva, o padre da paróquia, no sermão, criticou a crença dos pescadores no orixá e, desde então, os fiéis deixaram de celebrar, no mesmo dia, a missa na Igreja de Nossa Senhora de Sant´Anna. Estamos diante de um acontecimento inédito nas festas populares brasileiras e o que torna o dia 2 de fevereiro uma data exclusivamente dedicada ao orixá, sem nenhum vínculo com os santos católicos.
Como sabe-se, o Estado Moderno objetiva o controle dos códigos culturais e, até a década de 1930, no Brasil, havia uma ação ostensiva contra as manifestações não europeias: o samba, o candomblé, a capoeira. Eram práticas consideradas marginais, em um mundo que se pretendia civilizado, mas que acabaram consagradas como símbolos da brasilidade. Mesmo que as épocas de extrema repressão estejam no passado, não significa, por outro lado, que cessaram as tentativas de interferência. É o que parece ter ocorrido em 2019, quando o então prefeito de Salvador, Antônio Carlos Magalhães Neto, foi acusado de tentar mudar o nome oficial da Festa para “Lavagem do Rio Vermelho”, conotando, para muitos, uma tentativa de apagar as características africanas dos festejos².
As insistentes tentativas de controle das festas populares não tiveram sucesso diante das vivências dos segmentos sociais e isto leva a crer que a festa é vivida de modo muito peculiar por quem dela participa: classe, raça, gênero. Peter Burke (1995) chama estas festas de polissêmicas, cujos significados são vivenciados de forma diferente.
Entender as festas populares, no Brasil, não implica necessariamente discutir o embate entre raça e classe. Estamos diante de um fenômeno muito mais complexo e que envolve, simultaneamente, de forma ambivalente, hierarquia e igualdade, cordialidade e subalternidade, sem falar nos dramas, dilemas, contrastes, contradições, diferenças. Nas palavras de Roberto Da Matta (1990): “diferentes, mas juntos” (p.18).
É importante destacar o protagonismo dos pescadores na organização da Festa de Iemanjá e do presente coletivo. Sabemos que, na cultura popular, as pessoas das baixas camadas e marginalizados costumam ocupar algumas das posições de destaque nas manifestações culturais. Desta forma, temos populares que se tornam reis e rainhas, príncipes e princesas, bem como organizam, através de irmandades e associações, as expressivas festas populares. É o que ocorre, por exemplo, com a Festa da Boa Morte, na cidade de Cachoeira, no estado da Bahia, assim como as cheganças em Alagoas, os reisados (Folia de Reis) em Minas Gerais e as congadas em Goiás. Na Festa do 2 de Fevereiro, os trabalhadores do mar, através da Associação de Pescadores, são os organizadores dos festejos com a contribuição da caixa de auxílio mútuo, da sociedade civil e do Estado.
Essa é a introdução do artigo do professor Wagner Vinahas.
Para ler o artigo completo ACESSE AQUI.
2 Prefeito minimiza Festa de Iemanjá ter sido ‘Lavagem do Rio Vermelho’ em 2019. Bahia Notícias, Salvador, 02 de fev. de 2019. Disponível em: https://www.bahianoticias.com.br/noticia/243744-prefeitominimiza-festa-de-iemanja-ter-sido-lavagem-do-rio-vermelho-em-2019.html. Acesso em 06/02/2022.