Cecilia Santos, Elisiane Santos e Juliana de Oliveira Gois
As autoras são mulheres negras, membras do Ministério Público do Trabalho e integrantes do Coletivo Tecendo Diversidade.
Cecilia Amalia Cunha Santos é Procuradora do Trabalho em Araguaína. Vice Coordenadora do GT Comunidades Tradicionais do MPT. Especialista em Direito do Trabalho pela UNIASSELLVI. Especialista em Direitos Humanos e Cidadania Global pela PUC-RS. Ex-Juiza do Trabalho do TRT18. Membra fundadora do Coletivo Tecendo Diversidade.
Elisiane Santos é Procuradora do Trabalho no Rio de Janeiro. Doutoranda em Sociologia e Direito pela UFF. Mestra em Filosofia. Integrante do Fórum de Direito e Relações Raciais da EMERJ.
Juliana de Oliveira Gois é Procuradora do Trabalho em Campos dos Goytacazes. Especialista em Direito Individual e Processual do Trabalho pela USP. Especialista em Economia do Trabalho e Sindicalismo pela UNICAMP.
Entre o silêncio e a negação, poderia ser também o título deste artigo ao tratar do sistema de Justiça e Mulheres Negras, isso porque, além da falta de representatividade negra feminina nos espaços de poder, quando lá estamos, sistematicamente temos nossas falas silenciadas. Em outras palavras, nossa existência negada. É preciso urgentemente nos questionarmos sobre a participação e ingresso das mulheres negras nas carreiras jurídicas e o quanto isso impacta na produção do Direito e na realização da Justiça.
Não é difícil visualizarmos a ausência das mulheres negras nas diferentes carreiras que compõem o sistema de justiça, como magistradas, promotoras, defensoras, advogadas. Podemos facilmente realizar o chamado ‘teste do pescoço’, para constatar que estamos transitando em espaços predominantemente masculinos brancos heteronormativos (salvo quanto aos usuários (as) desse mesmo sistema). Quanto maior a instância judicial, menor a presença das mulheres negras. Precisamos nos perguntar onde estão as juristas negras? E o que essa ausência impacta no fazer Justiça?
Essa situação naturalizada ao longo de décadas precisa gerar incômodo, e, mais que isso, transformação. Há algo errado quando a maior parte da população não participa dos espaços institucionais do pensar o Direito e do fazer (ou buscar) a tão almejada Justiça. Que Justiça é essa que exclui as mulheres negras? Somos o maior grupo populacional no Brasil, somando-se pretos e pardos, 56% da população segundo dados do IBGE, sendo assim, onde nós estamos? Quais locais estamos ocupando?
Segundo o relatório ”Negros e Negras no Poder Judiciário”, elaborado pelo CNJ no ano de 2021, o número de magistrados negros e magistradas negras no país corresponde a 12,8% do total do quadro de aproximadamente 11.948 juízes e juízas, o que representa 1.534 pessoas. Não encontramos no censo informação especifica acerca da quantidade de magistradas negras.
Em todos os ramos do Ministério Público, a participação de mulheres negras nos quadros de membras é também bastante reduzida, normalmente não chegam – mulheres e homens juntos – a somar 15%. A falta de dados sobre a representatividade feminina negra nas diferentes carreiras jurídicas é uma constante. Normalmente não são realizados levantamentos que considerem a interseccionalidade, apontando apenas o recorte de gênero, sem análise da questão racial. Isso vai dizer muito sobre as estruturas institucionais marcadas pelo racismo estrutural. Não necessariamente uma instituição que tenha conseguido assegurar paridade de gênero nos seus quadros avançou em relação ao não silenciamento das mulheres negras.
Exemplo dessa situação é o quadro de membros e membras no Ministério Público do Trabalho, no qual as mulheres superam em quantitativo o número de homens integrantes da carreira de Procurador-a do Trabalho. Contudo, quando vamos falar de mulheres negras, precisamos de um olhar mais atento.
Até o ano 2021, não tínhamos um levantamento censitário com o recorte interseccional de gênero-raça[. A partir de debates provocados no âmbito de ações de Comitês de Diversidade, coordenadorias temáticas e do Coletivo Tecendo Diversidade, tivemos uma mudança importante no ano 2022, com a análise interseccional dos dados, vejamos:

Fonte: Gráfico Membras e Membros por cargo e cor/raça, constante do censo Política Nacional de Equidade de gênero, raça e diversidade do MPT, 2022. P.16.

Fonte: Gráfico Membras e Membros por cargo e cor/raça- detalhamento análise de gênero e raça, constante do censo Política Nacional de Equidade de gênero, raça e diversidade do MPT, 2022. P.17.
Conforme apontam os gráficos, no ano em curso, existem no MPT apenas 5 (cinco) mulheres pretas procuradoras do trabalho, 55 (cinquenta e cinco) pardas, somando 60 (sessenta) mulheres negras, num contingente de 760 (setecentos e sessenta) integrantes da carreira. Isso é dizer 7,89% do total de membros e membras. Ou seja, muito abaixo da representatividade que se espera e que deveríamos encontrar no sistema de Justiça, traduzindo-se na expressão do silenciamento pela ausência ou baixa representatividade de mulheres negras. Também ocorre institucionalmente o fenômeno da solidão da mulher negra, entre as poucas que integram os quadros, ao não se verem entre os pares e ao mesmo tempo carregarem solitariamente as marcas do racismo, ainda que possam nessa realidade desigual “movimentar” estruturas.
Esse número reduzido de participação, em relação ao último nível da carreira, no cargo de subprocurador e subprocuradora, é inexistente. Não há pessoas negras justamente nos cargos que em sua maioria participa das decisões concernentes a alteração de resoluções, como a do concurso para ingresso de novos membros e membras.
O Ministério Público do Trabalho do ponto de vista da equidade de gênero é uma instituição que apresenta números ótimos, sobretudo no primeiro nível da carreira, todavia quando se coloca um olhar sobre o quesito racial, nota-se que a disparidade é gritante.
Em relação às políticas hoje existentes, chama a atenção que mesmo havendo cotas previstas no edital, no XX concurso nenhuma mulher negra foi aprovada, apenas um homem negro, em um universo de mais de 5.000 (cinco mil) candidatos.
Nesse contexto, surgiu o coletivo “Tecendo diversidade”, formado por Procuradoras do Trabalho, que, diante da ausência de mulheres negras aprovadas no XX concurso, reuniram-se com o objetivo de implementar ações de apoio na preparação de candidatas mulheres negras não estáveis economicamente para ingresso nos quadros do MPT. Como mostra nossa realidade desigual, raça e gênero produzem vulnerabilidades específicas em relação às mulheres negras. São estas que recebem os menores salários e compõem a base da pirâmide social. Nesse sentido, o projeto consegue angariar bolsas em cursos preparatórios, realiza debates, aulas virtuais, facilita atendimento psicológico com valor social, e promove encontros de letramento racial. No último concurso, que aprovou três pessoas negras, concorrentes pelo sistema de cotas, duas eram mulheres, e participantes do Tecendo.
O Coletivo, no ano 2021, apresentou propostas para a atualização da resolução do concurso do MPT, sobretudo, objetivando maior efetividade na política de cotas raciais, no sentido de atender a ADC 41/2017, para que a medida afirmativa se aplique em todas as fases do certame. Entendemos que essa medida se faz necessária para o preenchimento do percentual mínimo de 20% das vagas reservadas a negros e negras. A par disso, entendemos ser fundamental a atualização do programa, para contemplar direito antidiscriminatório e questões raciais. Também deve ser observada a diversidade racial nas comissões de concurso, desde a elaboração e correção de provas, até as bancas de exame oral. Somente assim poderemos falar de políticas de ações afirmativas que visem de fato alterar a realidade da desigualdade racial e de gênero. O aperfeiçoamento da ação afirmativa deve ser uma pauta prioritária para todo o sistema de Justiça, se pensamos em democracia, igualdade e Justiça.
Nesse sentido, o Estatuto da Igualdade Racial – Lei 12.288;2010 – explícita que as ações afirmativas assegurarão o princípio da proporcionalidade de gênero entre os beneficiários
Art. 39. O poder público promoverá ações que assegurem a igualdade de oportunidades no mercado de trabalho para a população negra, inclusive mediante a implementação de medidas visando à promoção da igualdade nas contratações do setor público e o incentivo à adoção de medidas similares nas empresas e organizações privadas.
§ 1o A igualdade de oportunidades será lograda mediante a adoção de políticas e programas de formação profissional, de emprego e de geração de renda voltados para a população negra.
§ 2o As ações visando promover a igualdade de oportunidades na esfera da administração pública far-se-ão por meio de normas estabelecidas ou a serem estabelecidas em legislação específica e em seus regulamentos.
§ 3o O poder público estimulará, por meio de incentivos, a adoção de iguais medidas pelo setor privado.
§ 4o As ações de que trata o caput deste artigo assegurarão o princípio da proporcionalidade de gênero entre os beneficiários.[…]
Para que uma sociedade seja plural e inclusiva os fatores de raça/cor devem ser analisados na criação e no fortalecimento de políticas antidiscriminatórias.
Não podemos pensar nas desigualdades de gênero no Brasil, sem entendermos outro fator de discriminação, que perpassa as questões de gênero e estrutura o conjunto das desigualdades no pais, que é raça. Dentro do grupo mulheres, as mulheres negras são as que mais enfrentam exclusões e restrições. Podemos visualizar esta situação quando nos percebemos dentro do MPT, como maioria em número na composição de mulheres, contudo, menos de 8% do total geral. Relembrando o histórico discurso de Sojourner Truth (1797-1883) “e, nós, negras, não somos mulheres?.
Lélia Gonzalez, em sua obra, nos traz caminhos para entender que existe no Brasil uma divisão racial do trabalho, para além da questão de gênero. As mulheres negras, nesse contexto, ocupam a base da pirâmide social. E é notório e superada a falácia de vivermos em uma democracia racial. A sociedade brasileira é marcada pelo sexismo, pelo racismo e pela cisgeneridade estrutural. Há uma multiplicidade de opressões e discriminações vivenciadas pelas mulheres negras:
Não podemos silenciar quanto à violência cotidiana da exploração econômica e da opressão racial a que estão expostas milhares de glórias, marias. De lecys, de aglaetes, de alziras e de reginas da vida. Do fundo do poço do seu anonimato- nas favelas, na periferia, nas prisões, nos manicômios, na prostituição, na “cozinha da madame”, nas frentes de trabalho nordestinas-talvez nunca tenham ouvido falar de direito à cidadania, mas têm consciência do que significa ser mulher, negra e pobre, ou seja, viver acuada, à espreita do próximo golpe a ser recebido, vigiando-se e “saindo de cena” para não ser mais ferida do que já é quando se trata de diferentes agentes de exploração, da opressão e também da repressão. (GONZALEZ, 2020. P. 111).
O direito antidiscriminatório e, em decorrência, a implementação de ações afirmativas para romper desigualdades históricas, parte do pressuposto do reconhecimento e da reparação pelo não acesso a direitos fundamentais por grupos sociais discriminados, sobretudo pelo impacto social e reprodução destas desigualdades ao longo do tempo.
Kimberlé Crenshaw ficou conhecida pelo uso da expressão interseccionalidade, definindo como:
A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras (CRENSHAW, 2002, p. 7.)
Conforme nos traz a autora, são eixos ou categorias de subordinação, isto significa dizer, que tanto gênero como raça, constituem eixos específicos de discriminação, são fatores que influenciam nas relações de poder, na política, na economia e no mercado de trabalho, por exemplo.
Desse modo podemos inferir que o Sistema de Justiça brasileiro reproduz essa dupla distinção, ora pelo gênero ora pela raça.
Nesse contexto dá para imaginar um sistema de justiça de fato justo e efetivo sem a participação das Mulheres Negras?
A participação de mulheres negras no sistema de justiça, ocupando cargos de poder e decisão vai muito além daquilo que chamamos de representatividade. É claro que é importante para toda a sociedade e, principalmente, para jovens estudantes negras se enxergarem representadas nestes cargos, mas a importância da nossa participação não pode ser resumida a isso.
Para efetivação de uma democracia substancial é imprescindível que a voz das mulheres negras e periféricas possa ser ouvida dentro dos mais variados cargos do sistema de justiça, pois as vivências e experiências de realidade são diversas de um perfil hegemônico, muitas vezes distanciado de realidades sociais de populações oprimidas, principal público atendido e que tem seus direitos fundamentais sistematicamente violados.
O impacto dessa pluralidade de perspectivas se reflete na forma de atuação, no olhar para o enfrentamento de problemas sociais e, consequentemente, nas soluções apresentadas para proteção aos grupos vulneráveis, como pessoas periféricas, negras, transgeneres, indígenas e quilombolas.
A diferença é a democracia efetivada.
A inclusão de mulheres negras no Sistema é medida essencial para garantir a diversidade/pluralidade de perspectivas epistemológicas, segundo as juristas Lívia Sant’Anna Vaz e Chiara Ramos, na obra ”A Justiça é uma Mulher Negra” (p.34):
“Sem pluralidade na composição desses órgãos, a reprodução de uma hermenêutica que encarcera corpos negros e legitima a necropolítica é uma consequência previsível, que reforça o pacto de silencio sobre o racismo e encobre o impacto díspar do Direito sobre a população negra no Brasil.”
Com efeito, para efetivação da justiça social no Brasil são necessários olhares treinados para as estruturas que alicerçam as desigualdades, injustiças e demais mazelas sociais.
Nesse sentido, a mulher negra, por estar situada socialmente na encruzilhada entre estruturas opressivas de raça, classe e gênero, é corpo e voz fundamental para atuar no sistema de Justiça, pois o fará com base em epistemologias situadas nas suas experiências e atravessamentos.
Mulheres pretas, mulheres periféricas, mulheres indígenas, mulheres transgêneros precisam integrar as instituições que lutam por direitos, que defendem direitos, que interpretam e aplicam a legislação, para que esses olhares plurais realizem a tão almejada Justiça, e assim se tenha de fato uma concretização da democracia substancial, que tanto desejamos e que constitui fundamento do Estado brasileiro. A pluralidade traduz, ainda, eficiência, pois quanto mais diversidade nas pessoas integrantes dos espaços de mando e decisão mais ampliados e democráticos serão os atos deles decorrentes, e, na mesma medida mais legítimos.
Mulheres negras são o maior grupo populacional e maior força de trabalho no nosso país, o que importa dizer, inelutavelmente, que não há Justiça na Justiça sem as mulheres negras.
Entre o silêncio e a negação: uma análise da CPI do trabalho escravo sobre a ótica do trabalho “livre” da população negra, 2017. É o tema da dissertação de mestrado da autora Raissa Roussenq Alvez, disponível em https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/24473/1/2017_RaissaRoussenqAlves.pdf
https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/09/rela-negros-negras-no-poder-judiciario-150921.pdf
No Ministério Público do Trabalho os censos realizados no ano 2020 e o outro em 2021, não faziam uma análise interseccional dos dados, logo não havia informação sobre a quantidade de mulheres negras na instituição Ministério Público do Trabalho. Os dados apontavam que em relação a equidade de gênero nos cargos iniciais da carreira, há maioria feminina, em 2020 eram 393 membras e 379 membros.
Em 2020 não houve no censo uma pergunta específica sobre raça em relação a membros, os dados foram analisados somando membros e servidores, sendo que os números apresentados em conjunto apontavam que apenas 3% da força de trabalho do MPT se identificava como preto ou preta e 22% como pardos e pardas, não sendo possível identificar do número a quantidade de mulheres negras.
Em 2021 o número de mulheres membras se manteve superior ao número de homens, 395 mulheres membras e 374 homens. No referido levantamento, apenas 1% dos procuradores e procuradoras se identificavam como pretos/pretas o que equivale a oito pessoas, e 18% se identificavam como pardos, sendo que no último nível da carreira não havia nenhum subprocurador ou subprocuradora preto/preta, também não houve no censo a identificação da quantidade de homens negros-mulheres negras, ou seja, não houve recorte de gênero.
Coletivo formado por Procuradoras do Trabalho que visam auxiliar na preparação de mulheres negras não estáveis economicamente que almejam o cargo de Procuradora do Trabalho.
No XXI concurso, três pessoas inscritas pelo sistema de cotas foram aprovadas, entre estas duas mulheres negras, participantes do Tecendo. O projeto tem papel fundamental na preparação das candidatas, sobretudo pelo custo elevado dos cursos preparatórios, cujo acesso por meio das bolsas é fundamental para o preparo em condições não tão diferentes quanto dos demais candidatos, sobretudo das pessoas brancas, considerando que é concurso elitista, que envolve em médias gastos em torno de R$40.000,00 em cursos preparatórios.
Hooks, bell. 2021. P.251.
A Justiça é uma mulher negra. Lívia Sant’Anna Vaz, Chiara Ramos; ilustrado por Vanessa Ferreira – Preta ilustra – Belo Horizonte, MG, Casa do Direito, 2021.