O número de crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil aumentou pela primeira vez em duas décadas. O Relatório, da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), “Trabalho Infantil: Estimativas Globais 2020, tendências e o caminho a seguir” publicado na última quinta-feira(10/06), traz dados que indicam que o número de crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil chegou a 160 milhões em todo o mundo – um aumento de 8,4 milhões de meninas e meninos nos últimos quatro anos, de 2016 a 2020.
O relatório aponta para um aumento significativo no número de crianças de 5 a 11 anos em situação de trabalho infantil, que agora respondem por pouco mais da metade do número total global. Outro alerta é o número de crianças e adolescentes de 5 a 17 anos em trabalhos perigosos – definido como trabalho que pode prejudicar sua saúde, segurança ou moral – chegou a 79 milhões, um aumento de 6,5 milhões desde 2016 a 2020.
Todo essa problemática pode se agravar até 2022. O relatório adverte que, globalmente, 8,9 milhões de crianças e adolescentes adicionais correm o risco de serem empurradas para o trabalho infantil até o final de 2022 como resultado da pandemia. Um modelo de simulação mostra que esse número pode aumentar para 46 milhões se eles não tiverem acesso a uma cobertura crítica de proteção social.
A Oficial Técnica em Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho da OIT, Thaís Faria, diz que o relatório feito em 106 países do mundo traz dados muito importantes, mas muito difíceis. “Faz soar um alarme em relação à urgência de fortalecer as ações e políticas de erradicação do trabalho infantil. Esses dados podem piorar muito com a crise da Covid-19, se políticas, ações e diálogos sociais não forem feitos de forma prioritária.”

No Brasil, os últimos dados do Pnad/ IBGE indicam que quase 1,8 milhão de crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil em 2019. Com a pandemia existe o risco dessa situação se agravar. O Fundo das Nações Unidas para Infância (UNICEF) busca combater também essas práticas ilegais do trabalho infantil, no mundo e no Brasil. A chefe do escritório do UNICEF em Salvador, Helena Oliveira, diz que ações de mobilização e sensibilização da sociedade e da juventude e adolescência fazem parte da agenda de UNICEF no enfrentamento dessa violação de direitos.

“Uma importante estratégia implementada pelo UNICEF consiste na iniciativa Selo UNICEF, por meio da qual alcançamos 1.900 municípios brasileiros no Norte e Nordeste, através da incidência de ações municipais de enfrentamento ao trabalho infantil e a exploração sexual de crianças e adolescentes no nível municipal”, afirma Helena Oliveira. “O UNICEF também realiza levantamentos e pesquisas sobre o tema. E, em agosto de 2021, foi constatado que aumentou a incidência do trabalho infantil durante a pandemia em São Paulo: 26% em relação a maio do mesmo ano. Escola é também lugar de proteção, por isso é necessário priorizarmos as condições seguras e adequadas para a volta do funcionamento das escolas, diminuindo, assim, os riscos de mais crianças em situação de vulnerabilidade e de trabalho infantil”.
Desde outubro de 2020, o UNICEF, a OIT e o MPT, em parceria com o Instituto Aliança e a Plan International, implementaram o Àwúre Recôncavo, projeto que está hoje em 9 municípios do Recôncavo Baiano e na capital, Salvador, promovendo ações de fortalecimento das redes comunitárias de proteção à violência contra crianças e adolescentes na região do recôncavo. O projeto objetiva induzir mecanismos locais para o enfrentamento da exploração, exclusão, discriminações e intolerâncias que afetam crianças e adolescentes quilombolas, de terreiros, indígenas, negras, periféricas e LGBTQIA+.
A Plan International é uma Organização não governamental, que defende os direitos das crianças, adolescentes e jovens, com foco na promoção de igualdade de gênero. Estão no Brasil desde 1997 e, nessas duas décadas, já desenvolveram dezenas de campanhas para combater todas as formas de violência contra meninas e meninos.
A gerente da Plan International Brasil, na Bahia, Elaine Amazonas, fala que o Àwúre chegou para valorizar a identidade territorial para que esses adolescentes e jovens possam perceber possibilidades tanto no sentido da empregabilidade via lei de aprendizagem, mas, também, no empreendedorismo. “O Àwúre chegou para potencializar aquilo que a comunidade já faz, e para fortalecer a importância da aprendizagem, de um diálogo constante entre poder público, organizações sociais e empresas, na perspectiva do trabalho decente, onde o jovem possa ter seu primeiro contato com o mercado de trabalho de maneira protegida e com os direitos assegurados.”
É exatamente isso que Brenda queria. Aos 15 anos, ela sonha em ser policial, mas sabe das dificuldades. Ela acredita que o Àwúre chegou para fortalecer e ajudar na realização dos seus sonhos. “Por nós sermos negros e morarmos em uma comunidade, as chances de encontrarmos uma boa vaga é muito difícil, mas nós não devemos nunca desistir dos nossos sonhos, pois somos pessoas como as outras. Não é a cor da pele que irá definir quem somos. Eu vou em frente e irei lutar sempre pelos meus direitos”.
Maísa, de 18 anos, fala da importância do Àwúre nesse início de vida profissional. “Conheci o projeto e pude ter a formação de habilidades para a vida, preparação para o mercado de trabalho, protagonismo juvenil e direitos trabalhistas. Esse projeto foi muito importante, ainda mais nesse momento pandêmico onde as coisas estão muito difíceis e também por estar entrando no mercado de trabalho”.
A pobreza muitas vezes retira crianças e jovens da escola e os empurra precocemente para o mundo do trabalho, onde são submetidos a funções insalubres e perigosas. Dados do UNICEF apontam que 64,78% das crianças e adolescente que trabalham no Brasil são negros. Meninas negras representam entre 87% e 93% das crianças e dos adolescentes envolvidos em trabalho doméstico no país.

A procuradora do Ministério Público do Trabalho de São Paulo (MPT/SP), Elisiane dos Santos, chama a atenção para essa situação de racismo estrutural. “As crianças negras são as principais vítimas do trabalho infantil por ser o racismo uma das causas estruturais dessa grave violação de direitos, num processo de quase 400 anos de escravização da população negra e negação sistemática de direitos no pós-abolição. Em razão disso se naturaliza o trabalho doméstico das meninas negras, o trabalho na rua dos meninos negros, entre outras consideradas piores formas de trabalho infantil. Isso se reproduz no que chamamos de mitos do trabalho infantil, quando ouvimos frases como: ‘é melhor trabalhar do que roubar’, ‘é melhor trabalhar do que estar na rua’, todos esses discursos estigmatizam e desumanizam crianças e são direcionados apenas às infâncias mais vulneráveis. Elisiane dos Santos também chama a atenção para a questão de gênero. “Mulheres negras estão na base da pirâmide social. Quando falamos do mercado trabalho, as mulheres negras são maioria na informalidade, sem proteção social, e no trabalho formal recebem os mais baixos salários”. As políticas públicas de enfrentamento ao trabalho infantil devem levar em consideração as questões raciais e de gênero, segurança alimentar, e também de moradia.”
O fim do trabalho infantil é um objetivo do Àwúre. É dever de todas e todos garantir às crianças e adolescentes infâncias livres e plurais, com seus direitos fundamentais assegurados. Vida, saúde, educação, moradia, cultura, convivência social e comunitária, e liberdade religiosa, respeitando as tradições e cultura de cada povo e comunidade são direitos fundamentais das crianças e adolescentes. Crianças e adolescentes indígenas, quilombolas, ribeirinhas, de terreiros, periféricas, assim como todas as crianças, têm direito à proteção integral.