Nos livros e nas aulas de história muito se fala sobre escravidão, a exploração e sobre o grande acontecimento: a abolição. Mas o que não se fala é que, depois da abolição, os negros ficaram à mercê, sem ter onde trabalhar, morar e o que comer, restando para eles a discriminação, o descaso e a exploração.
Até hoje, os negros são a base da pirâmide social e quando destrinchamos essa pirâmide encontramos outra questão, a mulher negra é a base dessa base.
A mulher negra sofre o peso do preconceito e discriminações que as exclui de ocupar o espaço que lhe caberia, muitas vezes, por ser mulher e negra. Os problemas começam em situações simples, na própria infância. Quando criança, elas não se veem representadas em bonecas e desenhos animados. Rejeitaram seus cabelos crespos e a tonalidade da pele, disseminando um padrão de beleza que, desde criança, as meninas pretas não se reconhecem, ferindo a autoestima delas. Mais tarde, essas questões se refletem de uma forma muito mais grave nas relações interpessoais e afetivas.
As mulheres negras são a parcela mais pobre da sociedade brasileira, possuem a situação de trabalho mais precária, têm os menores rendimentos e as mais altas taxas de desemprego, são também as que têm maior dificuldade de completar a escolarização além de possuir chances pequenas de chegar a cargos de direção e chefia. Quando essa mulher obtém trabalho ocupa cargos de menor qualidade, status e remunerações. Estão engajadas em ocupações de precariedade e com difícil ascensão e quando percebemos os dados do racismo e violência é ainda mais preocupante. Segundo o Atlas da Violência 2021, os dados apresentados revelam que em 2019, 66% das mulheres assassinadas no Brasil eram negras. De acordo com o Atlas, em termos relativos, enquanto a taxa de homicídios de mulheres não negras foi de 2,5, a mesma taxa para as mulheres negras foi de 4,1. Isso quer dizer que o risco relativo de uma mulher negra ser vítima de homicídio é 1,7 vezes maior do que o de uma mulher não negra, ou seja, para cada mulher não negra morta, morrem 1,7 mulheres negras. Qual a melhor forma de enfrentar esses problemas diante de dados alarmantes como os que foram citados? Quais seriam as melhores soluções?
A advogada, feminista negra, atriz e doutora em Ciências Sociais, Dina Alves, observa os dados e levanta um questionamento.

“Por que enquanto o número de mortes por violência de gênero no Brasil se reduziram, o feminicídio de mulheres negras não só não seguiu essa tendência, como aumentou? Esses dados revelam o retrato das desigualdades no Brasil e nos mostram como o racismo e o sexismo são elementos constitutivos estruturantes que mantêm as violências históricas contra as mulheres negras. É importante também falar que essas estatísticas não são capazes de mencionar totalmente a violência doméstica e familiar, porque muitas mulheres não denunciam. Muitos dados precisam ser problematizados no nosso país, inclusive a subnotificação, então, a interseccionalidade das opressões, como a pobreza, racismo, gênero e sexismo revelam a face mais trágica entre as mulheres negras. Elas não têm nenhuma proteção. Vemos como o racismo está presente também nas próprias políticas públicas que existem hoje, porque são seletivas. No país onde a maioria das pessoas pobres são mulheres negras, essas políticas públicas não chegam na periferia, não chegam na quebrada, elas chegam na mansão. Elas falam sobre a violência doméstica e familiar, mas a partir também de um parâmetro do que é ser uma mulher numa sociedade racista como a sociedade brasileira”.
Dina também fala sobre a necessidade de “todes” ajudarem nessa mudança.
“É necessário convocar a sociedade para a gente pensar na virada de chave de mudanças estruturais e que a vida das mulheres negras seja efetivamente importante. Isso passa também por pensar ou repensar a própria educação, a incorporação da temática racial em pesquisa científica, a elaboração de políticas públicas voltadas para a garantia do direito à vida das mulheres negras e suas especificidades como centro do debate. O olhar de forma interseccional, ele é um passo adiante na mudança para gente pensar no ciclo da violência contra as mulheres negras que é histórica e sistêmica”.
Falando como antropóloga, mulher negra e que vem do nordeste, mas que também está no campo da universidade e que atua nessa esfera, a Doutora em Antropologia Social pela Universidade de Brasília, Andressa Morais, analisa o lugar do corpo negro na sociedade.
“O que me faz refletir sobre esses dados é a distância concreta entre teorias que tendem a reproduzir essa desigualdade no cotidiano e isso vai sendo colocado na nossa socialização coletiva. As pessoas vão negando sua identidade racial, as pessoas vão ser ensinadas a se odiarem esteticamente em relação ao seu corpo, sua cor da pele, ao seu cabelo, aos seus saberes, em relação aos seus gostos, aos seus desejos e ao seu lugar de origem e seu pertencimento, então a gente nesse momento passa a refletir [a gente se referindo a profissionais intelectuais negros, são aqueles intelectuais dissidente, intelectuais indígenas] que temos de fato um compromisso em entender que lugar é esse da história que produziu sobre nós uma compreensão distorcida sobre quem nós somos e como isso reverbera no presente em práticas concretas de violência contra os nossos corpos. A gente tem o tempo todo esses mapas e Atlas atualizando sobre o lugar do corpo negro, o lugar do corpo da mulher negra como esse alvo constante de uma violência que responde a um processo histórico. Essa é uma reprodução de uma estrutura racializada”.

Andressa também comenta o quanto os Atlas e Mapas possibilitam diagnosticar, planejar, indicar e fazer um retrato fiel das ocorrências e ressalta que os dados já vinham apresentando indicativos para violência contra a mulher.
“A gente tem que olhar para esses dados de maneira bem processual. Entender, por exemplo, que o Atlas da Violência anterior, já vinha apontando nessas direções. Isso nos faz refletir não só acerca dos dados brutos e dos números, mas também da vida nua e crua que a população brasileira enfrenta diante da violência de uma letalidade que é racial e que é marcada por questões de gênero. É necessário observar esses dados entendendo que ele nos fornece uma visão panorâmica. Possibilitando a chance de se desenhar políticas públicas voltadas para enfrentar esse tipo de problema dirigido exatamente para o perfil que tá na iminência radical de morte. Isso nos leva a um parâmetro diante de dados alarmantes, que a gente tende a buscar na esfera política, sobretudo na segurança pública, na educação, um conjunto de ferramentas que possam dirigir melhor campanhas de conscientização, capacitação dos profissionais e uma educação pedagógica voltada para a população”, diz a antropóloga.
Socióloga, mulher de terreiro e mulherista , Sônia Abiké, fala sobre o olhar dos “outros” às mulheres negras na sociedade.

“As mulheres sempre foram olhadas de formas diferentes, nós elaboramos uma produção preta a partir dos valores de africanidade. A historiografia oficial não traz e não evidencia as perspectivas pretas e nós estamos fazendo isso hoje. As mulheres pretas vêm ao longo da história demarcando um campo de luta, sobretudo dentro do movimento branco feminista. Já dizia Lélia Gonzalez, não se discute o feminismo sem discutir o racismo, porque nós estávamos ali e não queríamos estar ali como apêndice, nós queríamos estar ali como centro do debate. E as mulheristas africanas, que é onde eu me incluo, nós viemos desde o período do escravismo demarcando os nossos espaços com uma produção conceitual que atravessou décadas e nós estamos recuperando isso hoje. Então, os olhares aos nossos corpos são totalmente perseguidores, pois nós estamos influenciando para dentro das institucionalidades outras perspectivas. O povo preto tem uma historicidade e poderá apresentar narrativas concretas que pode desconstruir o racismo e o sexismo. Nos temos referencias históricas de lutas contra colônia a exemplo de Palmares e seus seguimentos ancestrais organizativo”.
Dependendo dos espaços em que estamos e vivemos temos dificuldade de perceber o racismo que se encontra velado e muitas vezes até os reforçamos. Para desvelar o racismo, é preciso validar os espaços de reorganização preta a exemplo dos terreiros e quilombos ou aquilombamentos, espaços que garantiram e garantem a vida do povo preto na dispersão. Portanto é necessário, romper os muros das instituições e demarcar lugares e apresentar as filosofias, ciências pretas, com outras verdades e outros parâmetros conceituais fora do eixo ocidental, que não suporta saberes pluriversais.
Estamos pavimentando o caminho para o enfrentamento dos problemas relacionados à mulher negra na sociedade e isso só é possível por meio da criação e efetivação de políticas públicas que reconheçam essa diferença e que cheguem a todos os lugares.
Transformando vidas e fazendo a diferença, o Àwúre, iniciativa do Ministério Público do Trabalho (MPT), Organização Internacional do Trabalho (OIT) e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), vem buscando essas mudanças através do projeto que atende mais de 60 mil pessoas em 6 estados brasileiros. Uma população de indígenas e comunidades tradicionais, quilombolas, de terreiros de religiões de matriz africana, ribeirinhos(as) e de periferia.
Não há fórmulas prontas, mas é possível plantar, semear, criar uma raiz forte e lembrar sempre da frase de Angela Davis: “Quando uma mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”.