Raquel Elias Ferreira Dodge é uma jurista brasileira. Integrante do Ministério Público Federal desde 1987, foi procuradora-geral da República de 2017 a 2019 e atualmente é subprocuradora-geral do MPF. É bacharel em direito pela Universidade de Brasília e mestre em direito pela Universidade de Harvard.
A extrema pobreza é um fato de relevância constitucional. Aumentou 48,2% de 2020 a 2021. Abaixo da linha de pobreza estão 62,5 milhões de pessoas, segundo o IBGE. Para conceder-lhes renda humanitária, a Constituição exige previsão na lei orçamentária, sem necessidade de emenda constitucional.
A pobreza é um estado de coisas inconstitucional que provocou duas providências recentes, a serem cumpridas. Em abril de 2021, o STF determinou, no mandado de injunção 7300, que o Executivo implante a renda básica de cidadania (Lei 10835/2004) para as pessoas em vulnerabilidade socioeconômica (renda inferior a R$ 89,00 e R$ 178,00), inclusive alterando a lei orçamentária. Verificou que, de 2014 a 2017, milhões de pessoas retornaram à extrema pobreza e que o Legislativo e Executivo deveriam aprimorar os programas de transferência de renda (Benefício de Prestação Continuada, Bolsa Família e Auxílio Emergencial). Na sequência, em dezembro de 2021, o Legislativo instituiu a renda básica familiar na Emenda Constitucional 114, como programa permanente.
O aumento da pobreza deu origem à EC 114 e ao MI 7300. O STF lembrou que o Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza foi prorrogado “por tempo indeterminado” pela EC 67/2010 e tem receitas próprias que devem ser gastas com ações de atendimento a “famílias cuja renda per capita seja inferior à linha de pobreza”, como estabelece a LC 111/2001, que o regulamenta.
O fato de a EC 114 ter sido promulgada após o julgamento da MI 7300 autoriza requerer ao Supremo Tribunal Federal que, com base no artigo 167-§3º da Constituição e no artigo 107-§6º-II do ADCT, exclua esta despesa urgente e imprevisível do teto de gastos.
Após estas providências, um longo fato imprevisível elevou a extrema pobreza: a devastadora pandemia mundial da COVID 19 agravou o quadro avaliado no julgamento do MI 7300 e na promulgação da EC 114.
Neste final de 2022, o aprofundamento da desigualdade levou a um impasse na agenda pública. Milhares de pessoas estão abaixo da linha de pobreza, mas falta aprovação orçamentária para cumprir a decisão do STF e a EC 114 a partir de 2023. O teto de gastos instituído pela EC 95 é apontado como motivo para emendar a Constituição e, só após, incluir na lei orçamentária a previsão de renda para os mais necessitados.
Todavia, é inusitado que, para cumprir a Constituição e a decisão do STF, seja necessário emendá-la. A responsabilidade social e a responsabilidade fiscal são normas constitucionais. É necessário conciliá-las com os princípios, fundamentos e objetivos do Estado Democrático de Direito. De um lado, a EC 95 controla o volume de gastos públicos futuros, com base nos gastos feitos no ano fiscal anterior e na inflação havida no período. De outro, a Constituição (arts. 3º-III, 6º e 23-X) e a EC 114 exigem ações para “erradicar a pobreza e a marginalização”, dar “assistência aos desamparados”, “combater as causas da pobreza” e dar renda básica familiar às pessoas em situação de vulnerabilidade social. No centro do debate, a pobreza e a dignidade humana reclamam qualidade do gasto público para sustentar o equilíbrio fiscal sem sacrificar os pilares da democracia. A responsabilidade fiscal não pode dar causa ao descumprimento da responsabilidade social.
A renda básica familiar é uma novidade constitucional. Obteve esta estatura jurídica especialíssima com a EC 114, após outros programas de transferência de renda, instituídos por lei, terem conquistado a reputação de reduzir a pobreza, antes de modificações recentes. Ao assumir status constitucional, a nova renda básica aumenta a responsabilidade estatal e traz a interpretação das normas para o campo da Constituição.
A Constituição não deu um benefício humanitário com uma mão e o negou com a outra. É por isso que, a partir de 2023, critérios normativos que consideram apenas fatos do passado para definir o teto de gastos, como consta da EC 95, não obstam o cumprimento da EC 114 e da decisão do STF no MI 7300, porque no presente a União tem uma dívida constitucional com milhões de pessoas abaixo da linha da pobreza. São muitos os deveres constitucionais a serem cumpridos com base na lei orçamentária anual, mas equilíbrio fiscal não pode resultar do descumprimento de obrigação constitucional permanente com pessoas em situação de vulnerabilidade. Inviabilizar a correção monetária do benefício, suspender novos acessos, ou não incluir a despesa com a renda básica na lei orçamentária anual significam a mesma coisa, ou seja, negar o direito constitucional.
A solução jurídica para o impasse dispensa emenda constitucional. O aumento da pobreza é fato urgente e imprevisível, que está excluído do teto de gastos, segundo os artigos 167-§3º da Carta e 107-§6º-II do ADCT. O artigo 167-§3º da Constituição permite que a lei orçamentária anual, em seu texto principal ou mediante créditos extraordinários, excepcione esta despesa do teto de gastos para cumprir dever permanente, notadamente quando já foi determinado pelo Supremo Tribunal Federal.
A extrema pobreza fere a dignidade humana, mantém milhares de pessoas sem trabalho, emprego e renda, e desconstrói a expectativa de formar uma sociedade justa, livre e solidária. O dever estatal de erradicar a pobreza é irrenunciável e vinculado a um princípio fundamental da República. É pilar do Estado Democrático de Direito, que tem fundamento na dignidade da pessoa humana e na redução da desigualdade.
A Lei de Responsabilidade Fiscal deve ser interpretada de acordo com a Constituição, e não o contrário. Seu artigo 24 autoriza excluir do teto de gastos o aumento de despesa da seguridade social, como a renda básica familiar, e dispensa compensações fiscais, quando forem observados os critérios legais para a assistência social; quando houver expansão qualitativa do atendimento e dos serviços prestados; e quando houver reajuste do benefício para preservação do seu valor real. A elevação do valor do benefício para R$ 600,00 e a inclusão de R$ 150,00 para família com crianças em idade inferior a seis anos é uma expansão qualitativa, porque uma mesma ação estatal cumpre dois deveres constitucionais, o de superar a pobreza e o de proteger a família e a infância.
O cumprimento do dever constitucional de dar renda básica familiar às pessoas em situação de vulnerabilidade social, instituído pela EC 114 e exigido pelo STF no MI 7300, é benefício humanitário e democrático que se concilia com a exigência constitucional de equilíbrio social e de equilíbrio fiscal, por maio da melhora da qualidade do gasto público ao longo do ano orçamentário e não só no seu início.