Brasil, país do samba, da capoeira, do candomblé, da feijoada, do futebol e do carnaval. País cuja cultura popular é apontada como fascinante, ao lado de sua natureza exuberante. E falando em carnaval, aqui isso já está no costume, na tradição e na cultura brasileira, mas ao contrário do que muitos pensam, o Carnaval não é uma festa tipicamente brasileira. Na verdade, a festa nasceu na Grécia Antiga em meados dos anos 600 a 520 a.C. A festividade ocorria em comemoração à fertilidade do solo e festejava-se a colheita agrícola. Certamente que o vinho e a sensualidade não faltavam.
Antes de se tornar a festa que conhecemos hoje, no século 20, o carnaval era um evento quase que apenas para os brancos, dos segmentos elitizados da população. A participação do negro era fortemente perseguida, repreendida e tratada como questão de polícia. No Brasil, o carnaval desembarcou junto com a família real, em 1808. Claro que aqui ganhou, digamos, uma nova roupagem.
Foi no século passado que o carnaval começou a mudar. Nesse período se deu início a representação do carnaval como uma festa tipicamente brasileira, com origens africanas em que, nos dias de festa, mistura pobres e ricos, negros e brancos, cultura popular e de elite.
Criado e mantido pelo povo, o Carnaval da Bahia é a maior festa de participação popular do planeta. Mas essa folia que é hoje, cheia de união, representação, religiosidade e resistência, nem sempre foi assim.
Em 1974, surgiu o primeiro bloco afro fundado na Bahia, o Ilê Aiyė, nascido no Curuzu, no bairro da Liberdade, em Salvador (BA), levou pela primeira vez para as ruas, uma agremiação carnavalesca que expressava claramente nas letras de suas músicas, o protesto contra a discriminação racial, ao mesmo tempo em que valorizava enfaticamente a estética, a cultura e a história africana. Assim como o llê Aiyê, emergem na mesma década outros blocos afros, tais como o Mutuê (1975), o Olodum e o Malê Debale (1979), todos formados por moradores de comunidades essencialmente negras.
A saída do Ilê é um dos momentos mais significativos do carnaval na Cidade da Bahia. No sábado de carnaval, uma multidão se concentra no Curuzu para ver o ritual que vem do candomblé. São oferecidos milho branco cozido e pipoca, alimentos de predileção de Oxálá, orixá da paz, e de Obaluaê, orixá da Saúde.. Em seguida, uma revoada de pombas brancas anuncia a saída da Deusa do Ébano, que representa a beleza negra.
Mas, mais do que beleza, o llê é um bloco afro e de resistência. A sua luta e trajetória, se misturam, na representatividade da negritude e africanidade.
Vovô do Ilê, nome pelo qual é conhecido o músico Antônio Carlos dos Santos Vovô, fundador e presidente do bloco afro do Carnaval de Salvador Ilê Aiyê, e considerado “importante personalidade do movimento negro brasileiro” e “uma lenda do Carnaval baiano”. Vovô do Ilê fala sobre o trabalho em promover uma “reaproximação da África” através do bloco.

“O Ilê foi o primeiro bloco afro do Brasil, fundado para participação do povo negro que era muito discriminado aqui no carnaval da Bahia. A importância do Ilê Aiyê para o povo negro foi porque através do Ilê em suas músicas e temas, nós conseguimos fazer o resgate do orgulho de ser negro. As pessoas antes não queriam assumir sua negritude, e, infelizmente, tem alguns hoje que não assumem, falam que são morenos… Mas o Ilê reforça nossa força com seus temas e músicas contando a história da África. Com grandes movimentações nós conseguimos fazer um carnaval e também educar e informar, pois, antes do Ilê Aiyê, até as pessoas que iam para as universidades sabiam pouco sobre a África. Nós chamamos a musica de música-poesia, que é uma música que faz um resgate muito importante e de valorização da mulher negra, essa música não fala bem nem mal do homem branco, mas sim do povo negro, mudando o fato que nós sempre ouvíamos o negativo. Essa música manda de volta, em forma positiva, então isso fez com que as pessoas começassem a se gostar e se respeitar, assumindo sua roupa colorida, seu cabelo, seus lábios grossos, seu nariz, então isso foi muito importante na trajetória do Ilê, fazendo com que surgissem outros blocos afros com a mesma filosofia, na Bahia e no Brasil como um todo”.
O Ilê Aiye se iniciou com a força de Mãe Hilda Jitolu (1923-2009), Ialorixá do terreiro Ilê Axé Jitolu e mãe de Vovô. Após o falecimento de Mãe Hilda e mesmo com as dificuldades, Vovô mantém a tradição, mas comenta sobre a dificuldade de apoio das grandes marcas.
“Com essa crise sanitária, estamos tendo muitas dificuldades em manter as atividades sociais, culturais e a tradição do ritual que nós realizamos todos os anos, mesmo ele só ocorrendo na saída do Ilê. De criação de minha mãe, pedimos paz e caminhos abertos, e isso virou uma atração à parte. A saída do Ilê só acontece especificamente no carnaval, claro que nós não deixamos de fazer as nossas atividades internas e religiosas, até mesmo para se manter em todas essas dificuldades, pedimos paz, saúde e prosperidade a todos, principalmente para nós do bloco afro que temos muitas dificuldades em conseguir apoios e parcerias, pois aqui na Bahia todo mundo admite ter racismo, mas se você perguntar, ninguém é racista. Aqui, temos dificuldade a nível de projetos de apoio governamental e municipal e principalmente no setor privado, mesmo o povo negro consumindo tudo, aqui se tem dificuldade em conseguir uma parceria onde as grandes empresas botam dificuldades em associar e apoiar nosso movimento”.
A presença de blocos negros no carnaval de Salvador já é bem conhecida, mas o que muita gente não sabe é que a festa baiana luta também para manter viva a presença e influência indígenas. O Apaches do Tororó, criado em 1969, e o Comanches do Pelô, criado em 1974, lutam para não deixar morrer a cultura indígena no Carnaval baiano. Uma luta pela diversidade que torna tão especial a cultura brasileira.
A cultura brasileira é fruto da aproximação desenvolvida desde os tempos da colonização, que sabemos que não foi, necessariamente, um processo amigável entre colonizadores e colonizados, entre brancos e índios, entre brancos e negros. Apesar do contato adverso num primeiro momento entre as etnias, o processo de mestiçagem colaborou para a diversidade da cultura no país no que diz respeito a culinária, costumes, práticas, valores, entre outros elementos.
Anabela Gonçalves, socióloga, negra, indígena e ativista fala sobre a forte influência da África na alimentação brasileira.

“A influência africana está no Brasil como um todo, eu sou de São Paulo e percebo nuances e força da cultura africana em tudo que se estabelece, desde as pessoas até na influência de como se veste, daquilo que é referência estética para grande parte das pessoas e muitas vezes a gente não consegue reconhecer. A cozinha africana tem uma influência bem forte na nossa alimentação. É uma questão que vai desde o preparo, aos condimentos, as escolhas das coisas tem uma influência muito forte da África, dos continentes africanos. A utilização do milho na nossa alimentação, a utilização do feijão, a forma dos preparos alimentares, o óleo de dendê, o churrasco é uma grande influência, a gente tem muitas formas importantíssimas de alimentação que são influências africanas. O próprio plantio, a utilização da banana, do coco seco na alimentação. Percebemos que essas são coisas que já existiam na alimentação africana e que pelas mulheres habitarem nesse ambiente da cozinha tão fortemente, elas foram elaborando os pratos a partir do que já existia no Brasil”.
A socióloga também comenta sobre a música, dança e religiosidade, características fortes do povo africano.
“A religiosidade também é muito importante para os africanos, pois ela compõe a vida, ela não é um campo separado, mas um campo da espiritualidade que compõe a vida. Isso referente a África que veio para o Brasil, sobre as influências dos africanos que vieram aportar no Brasil. Outra questão muito forte é com a música e a dança, que é uma característica muito forte do continente africano, da música e da dança, e de certa forma também estarem na espiritualidade e também no cotidiano. O samba é de grande importância para nós, mas ele remonta uma ancestralidade passada, composta na vida de hoje. A dificuldade em lidar com a organização social ocidental, as regras e valores ocidentais impostos sobre nosso povo tem muito a ver com nossa ancestralidade, com aquilo que nos compõe, tanto como povos negros e povos indígenas, a gente se compõe como ser humano a partir de outras orientações sociais, que não essas datas pelo ocidente. Então isso nos atravessa hoje, nos organiza, mas de alguma forma existem valores que a gente pode remontar na constituição do nosso povo, a partir dos povos indígenas que também são de certa forma povos negros”.
A comida, a dança, a religiosidade indígena e, principalmente, negra transformaram e ajudaram a formar o carnaval brasileiro, principalmente o da Bahia, na festa que é hoje.
O Àwúre, iniciativa do Ministério Público do Trabalho, Organização Internacional do Trabalho e Fundo das Nações Unidas para a Infância reforça a importância do respeito a todas as religiões e culturas e também do resgate em trabalhar a pluralidade do nosso país, dando ênfase à cultura afro-brasileira.