“Como esquecer daquela madrugada gelada em Brasília? Eu estava numa terra estranha, cercada de gente estranha, uns homens bem vestidos, que se diziam autoridades, mas eu sabia, aqueles sorrisos todos eram falsos, porque eles prometiam demarcar terras que eram nossas e que foram invadidas por fazendeiros, mas assim que a gente voltava para o Sul da Bahia, eles até esqueciam que a gente esteve lá.
As nossas terras em Pau Brasil e Itajú do Colônia tinham sido doadas a fazendeiros em troca de apoio político e o governador da Bahia naquela época que eu fui a Brasília era dono de tudo, acho que até da Justiça. E nada de sair a demarcação.
Mas a gente era de luta, uma força que vinha dos nossos ancestrais e que eu sabia, iria ser mantida pelos nossos descendentes.
O que eu não sabia é que a maldade dos homens poderia ser tão grande, e olha que ao longo dos séculos nós sempre sofremos com a maldade daqueles que invadiram as nossas terras e tentaram matar a nossa identidade.
Como eu disse, fazia muito frio naquela madrugada em Brasília e eu estava dormindo na rua, porque a gente não tinha dinheiro nem pra pagar hotel, quando de repente, eu senti um calor no corpo, achei que alguma alma boa tinha me oferecido um cobertor.
Mas não era um cobertor, era fogo. Isso mesmo, quatro meninos ricos para se divertir haviam ateado fogo no meu corpo. Eu senti uma dor imensa, até ver a lua se tingir de vermelho e ai eu não senti mais nada.
Quando meu espírito chegou aqui no ybaca, eu sabia que a nossa luta não iria parar.
De certa forma, minhas chamas seriam o fogo da esperança de que a gente pudesse produzir e viver em paz nas terras que, por direito, eram nossas”.
Índio pataxó Galdino de Jesus, queimado vivo no dia 19 de abril de 1997.
´Eu sou guerreira, mas meu trabalho é pra combater, eu entrego meu peito à lança, nossa batalha temos que vencer´.
“Quando eu cantei essa música num encontro de povos indígenas em Brasília em 2023 não imaginei que era uma premonição.
A gente avançou muito nos últimos anos, conseguimos a demarcação de várias áreas, nosso irmãos tupinambás hoje tem suas terras ainda que vivam sofrendo ameaças, mas mesmo assim é preciso lutar, porque existem muitas áreas indígenas que são ocupadas irregularmente pelos fazendeiros.
Dizem que Brasil nasceu aqui no Sul da Bahia em 1500. As vezes penso que quando o tal de Brasil nasceu o nosso povo começou a morrer.
E que só não fomos dizimados porque somos forjados na luta, não temos medo da batalha e porque nossa causa é justa.
Quando meu irmão Cacique Nailton Pataxó me chamou pra gente retomar uma área que por direito é nossa, lá perto do imenso Rio Pardo, eu aceitei, porque nunca fugi da luta e como eu mesmo já contei aqui, não tenho medo das lanças.
Eu só não esperava, nem contava com as balas.
A brutalidade dos homens não tem mesmo limite. Em vez do diálogo, eles dispararam tiros.
Muitos tiros. E naquela explosão de violência, em meio aos gritos de medo, só lembro de uma coisa me atingindo, uma dor no corpo e o sol se tingindo de vermelho de sangue.
E me lembro que quando meu espírito chegou aqui no ybaca o companheiro Galdino veio me receber.
Lá embaixo, na terra, nesse solo que pra nós é sagrado, eu sei que nem o fogo nem as balas vão calar a nossa voz.
Porque nós somos e seremos semente e sempre vamos germinar em cada indígena e em cada pessoa que ainda consegue se indignar e combater as injustiças”.
Maria de Fátima Muniz, a Nega Pataxó, foi assassinada no dia 21 de janeiro de 2024 num conflito com fazendeiros em Potiraguá, no Sudoeste da Bahia