Ana Maria Villa Real é Procuradora do Trabalho e Coordenadora Nacional de Combate à Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente (Coordinfância) do Ministério Público do Trabalho.
Entre 1992 e 2015, houve avanços muito significativos no país com a retirada de 5 milhões de crianças e adolescentes com idade entre 5 e 17 anos do trabalho infantil, o que significa uma redução de mais de 65%. Inúmeros fatores contribuíram para que isso fosse alcançado.
Como o trabalho infantil é um fenômeno multicausal, não existe uma única solução para combater o problema. No período acima indicado, o Brasil elevou a idade mínima para o trabalho de 14 para 16 anos (EC nº 20/98), ratificou a Convenção 138 da OIT, que dispõe sobre a idade mínima para o trabalho, bem como a 182, que trata da eliminação das piores formas de trabalho infantil. Além disso, reconfigurou a aprendizagem profissional (Lei 10.097/2000), instituindo-a como instrumento de prevenção e erradicação do trabalho infantil. A fiscalização do trabalho foi incrementada. Foi instituída a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho do Trabalho Infantil – CONAETI, que editou três planos nacionais de prevenção e erradicação do trabalho infantil. Houve a aprovação da lista TIP, que estabelece as piores formas de trabalho infantil. A educação escolar básica obrigatória passou a contemplar a faixa etária dos 4 aos 17 anos. A assistência social foi consideravelmente fortalecida e foi criado o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil – PETI, principal política para a erradicação do trabalho infantil no país.
No âmbito do Ministério Público do Trabalho, foi instituída a Coordenadoria Nacional de Combate à Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente no ano 2000, que passou a concentrar esforços na prevenção e erradicação do trabalho infantil, a partir da realização de audiências públicas, da promoção de ações para identificar crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil, do ajuizamento de ações para compelir os Municípios a adotarem políticas públicas para a prevenção e erradicação do trabalho infantil, da incidência no Congresso Nacional, emitindo notas técnicas sobre proposições legislativas que tentam reduzir a idade mínima para o trabalho ou flexibilizar a idade para o trabalho de crianças e adolescentes, entre tantas outras ações e projetos. O trabalho de incidência política no legislativo por parte da sociedade civil cresceu significativamente e a participação da sociedade civil em várias instâncias deliberativas sobre o tema se fortaleceu, assim como o controle social de ações e programas do governo voltados para o enfrentamento do trabalho infanti.
Todavia, há alguns anos, retrocedemos em diversas frentes: a Conaeti foi extinta, apesar de reinstituída posteriormente, o III Plano Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil se encontra até hoje paralisado e sem coordenação efetiva, o desinvestimento na assistência social é uma dura realidade, a sociedade civil foi afastada de diversas instâncias deliberativas, e, mais recentemente, foram editadas medidas (MP 1.116/22 e Decreto 11.061/22) que fragilizaram e elitizaram a aprendizagem profissional, afastando adolescentes da política. Além disso, há no Congresso Nacional movimento no sentido de reduzir a idade mínima para o trabalho. Como se pode ver, o cenário para a infância é bastante desafiador.
O trabalho infantil não é mais considerado uma meta global para muitos países, apesar disso, é preciso reconhecer que o problema é existente. A meta 8.7 prevê medidas para erradicar o trabalho infantil em todas as suas formas.
O Brasil se distanciou muito desse compromisso global, consubstanciado na meta 8.7 da Agenda 2030. É urgente ultrapassar todos os retrocessos acima listados e recuperar o caminho do progresso, bem como fomentar o trabalho decente, fazer a transição do trabalho informal para o trabalho formal, investir em educação integral e de qualidade, fortalecer a política de aprendizagem profissional, que deve voltar a ser prioritariamente para adolescentes, investir na proteção social de famílias e crianças de acordo com as suas necessidades, para permitir que crianças e adolescentes permaneçam na escola, em atividades de contraturno e não sofram com insegurança alimentar. É preciso que o Estado adote medidas austeras, inclusive legislativas, relativamente às cadeias produtivas, exigindo que todos os atores que nelas intervenham sejam responsabilizados não só pela prevenção, como também pela eventual incidência de trabalho infantil e de trabalho análogo ao de escravo.
É muito importante continuar o trabalho de conscientização da sociedade de um modo geral, mostrando-lhe que as infâncias negras, pobres e periféricas são as que mais sofrem violações de direitos e que para elas só deve existir, tal como para crianças e adolescentes brancos e de famílias de classes média e alta, o caminho da concretização dos direitos fundamentais de que são titulares todas as crianças e adolescentes do nosso país: a escola, o lazer, o esporte, a cultura, a saúde, a alimentação, a moradia, entre tantos outros.
Em resumo, é dever de todos nós garantir a todas as crianças o direito a uma infância digna, plena e livre de trabalho infantil. Não se pode prevenir uma violação de direito (necessidade de sobrevivência, prática de ato infracional, drogadição) mediante a defesa do trabalho infantil, que é uma violação de direitos, a qual rouba infâncias, perpetua o ciclo da pobreza de famílias, deixa sequelas físicas, mentais e psicológicas e pode até matar. Há muitos acidentes de trabalhos fatais envolvendo o trabalho de crianças e adolescentes, que são pessoas em peculiar condição de desenvolvimento e, portanto, exigem atenção e cuidados especiais por parte do Estado, da sociedade e das famílias. Ao contrário do que apregoa o adágio popular, trabalhar mata, mata adulto, que dirá criança. Infância é direito, não pode ser privilégio.