Lideranças de povos tradicionais de comunidades de matriz africana, sacerdotes, sacerdotisas, parlamentares e agentes culturais de várias regiões do Brasil participaram, em Brasília, do Seminário sobre o Marco Legal dos Povos Tradicionais. A iniciativa foi da Frente Parlamentar Mista Nacional em Defesa dos Povos Tradicionais de Matriz Africana e do Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos Tradicionais de Matriz Africana (FONSANPOTMA).
Os povos, comunidades tradicionais e grupos multiculturais buscam o desenvolvimento sustentável, o uso equilibrado dos recursos naturais e procuram reproduzir a cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas geradas e transmitidas pelas tradições dos mais velhos para os mais novos.
O Marco Legal dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana tem por objetivo o reconhecimento da contribuição desses povos na construção do Brasil e na valorização da ancestralidade que estabelece vínculos identitários entre o continente africano e o Brasil. A proposta contém 34 artigos, entre eles está a constituição do Fundo Nacional de Reparação do Crime contra a Humanidade que foi a escravidão, destinado a custear ações governamentais para o desenvolvimento dos povos e comunidades tradicionais de matriz africana.
Iêda Leal, Coordenadora Nacional do Movimento Negro Unificado (MNU) fala da necessidade de adeptos de religiões de Matriz africana estarem presentes na construção do Marco Legal, pois é “Reconstruir o país através das mãos de quem entende”.

“Nós precisamos construir ou continuar construindo nossas variadas proteções e esta demonstração da teia, da rede, desse entrelaçamento, ela é absolutamente necessária e se faz no momento oportuno. Reconstruir o país através das mãos de quem sabe e entende a energia das águas, do barro, do vento, das folhas, é um pouco mais da possibilidade que nós trazemos para oferecer para o país olhares diferentes e absolutamente certos daquilo que nós somos”.
O Direito à liberdade de religião ou de crença é garantido pela Constituição Federal, mas infelizmente os casos de intolerância religiosa são muitos. Dados do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos apontam 645 registros de violações da liberdade de crença e religião no Brasil entre janeiro e dezembro de 2021, a maior parcela relacionada a religiões de matriz africana — incluindo Candomblé, Umbanda e outras.
Sacerdotisa da Casa de Umbanda São Jerônimo – Quilombo do Pai Zé Pretinho (PI), Mãe Joelfa de Xangô é umbandista e candomblecista e fala sobre a intolerância religiosa.

“Infelizmente todos os dias nós passamos e vemos casos de racismo, intolerância religiosa, barracão sendo queimado, filho de santo sendo agredido na rua e a gente só quer que, na verdade, essas leis e os representantes que estejam nos espaços de poder, possam entender e ter um outro olhar para nossa religião. Nós temos direitos, nós somos uma grande maioria, o povo de terreiro não é a grande minoria, nós somos uma grande maioria. Nós construímos esse Brasil, nós estamos aqui desde os primeiros tempos segurando, trabalhando e protegendo nossa tradição”.
Mãe Joelfa ainda comenta o quão fundamental é a construção do Marco Legal.
“É muito importante porque o próprio objetivo que é de proteger a cultura, a tradição dos povos de matriz africana. Primeiro por conta das nossas tradições e por conta de nossa religião, ser uma religião oral. É importante que nós, hoje no Brasil, em um país que não é laico, que não respeita nossas tradições, quanto mais leis e mais de nós estivermos dentro das Câmaras com os projetos fortalecendo, e acima de tudo, protegendo o nosso direito de exercer a nossa fé, a nossa religião. Então quanto mais projetos a gente tenha como o Projeto de Lei que é o do Marco Legal, mais politicas públicas, assim a gente espera, a gente possa ter, para estarmos trabalhando dentro das nossas comunidades, nossos terreiros e nossos territórios”.
Gill Sampaio Ominirô é bàbálòrìṣà, cientista social, linguista e pesquisador de Candomblé e entende que o Marco Legal, no momento que estamos, vem para auxiliar as comunidades de terreiro na preservação de seus locais, santuários, locais de culto e preservar a integridade física dos adeptos e sacerdotes, a integridade cultural e religiosa diante de tantas agressões.

“Nos últimos anos observamos na população certa “licença” para agressões a terreiros, coisas que décadas atrás não eram tão comuns. Era comum séculos atrás, mas décadas atrás, não. Pois nós passamos a ter instituições, leis que nos protegem, mas com a licença dos governantes, com a palavra de estímulo governamental ou Estadual ou Federal, muitas pessoas se sentiram no direito de agredir pessoas por causa de suas religiões. Então, vários e vários terreiros foram depredados, destruídos. O que pode até ser considerado como terrorismo, o que as delegacias não estão nem um pouco aptas e dispostas a registrar as ocorrências dessa forma, então essas ocorrências acabam sempre sendo registradas como intolerância religiosa e algo do gênero, e pela forma como a sociedade e as instituições jurídicas e policiais veem isso como algo menor, como se fosse uma espécie de briga de vizinhos e as denuncias acabam não indo para frente, não é registrado e fica por isso mesmo, os agressores não são punidos. Por isso a importância da aprovação de um Marco Legal que fomente ações de prevenção e proteção aos locais de terreiro e ponha em prática as leis que já existem. As pessoas precisam ser responsabilizas e penalizadas pelos seus crimes de agressão e terrorismo”.
O Àwúre, projeto de iniciativa do Ministério Público do Trabalho Organização Internacional do Trabalho e UNICEF Brasil, atende hoje cerca de 10 mil famílias que, juntas, somam mais de 60 mil pessoas indígenas, negras, quilombolas, ribeirinhas, moradoras de comunidades periféricas e praticantes das religiões de matriz africana. Busca promover o diálogo, diversidade, pluralismo, o respeito às identidades, a tolerância, o princípio participativo e democrático, cooperação, promoção e valorização das condições de vida e trabalho desses povos.