Bia Pankararu é mulher indígena, lésbica, do sertão do Nordeste, da Terra Indígena Pankararu, em Pernambuco, mãe, técnica em enfermagem, cineasta que já nasceu na luta.
Com certeza, com total e absoluta certeza, é uma carga muito maior, tanto que o índice de suicídio de indígenas LGBTs é enorme, o índice de sofrimento mental e psíquico de depressão, de automutilação, é enorme. Eu sou uma sobrevivente de um suicídio, eu tentei suicídio aos 17 anos.
Então, anos depois, quando eu me formei como técnica de enfermagem e quando entrei na saúde indígena no pólo de Pankararu, e que eu tentava levantar essa discussão enquanto uma discussão necessária e urgente se debater sobre essa questão dentro dos territórios, era sempre “chupar um abacaxi com a casca”, e se sentir desamparada de todos os lados.
Homofobia dentro de um território indígena chega ser muito dolorida, pois você está sofrendo homofobia de todo mundo que você conhece, pois dentro do território a gente não tem anonimato. Todos nós nos conhecemos, todos somos parentes se cutucar todo mundo é primo, dessa forma você sofre uma violência, uma discriminação de gente que você na maioria das vezes ama, ou então deveria confiar.
Quando eu olho para meu povo e para todos os outros povos que tem discriminação, misoginia e um machismo tão enraizado, ai eu vejo que a colonização deu muito certo dentro dos territórios. São poucos os territórios que eu sei que o pessoal ainda respeita a sexualidade e gêneros. Mas quando olhamos para esses territórios, são muito aqueles que têm menos contatos.
Os povos do Nordeste têm contato desde a primeira Caravela que chegou aqui no Brasil, exemplo disso é o caso de Tibira.
Em 1614, um índio tupinambá foi executado por influência da Igreja Católica por conta de sua orientação sexual; conhecido como Tibira do Maranhão, trata-se do primeiro caso documentado de morte por homofobia no Brasil.
Ele vivia em um tempo que nem existia isso, dessas caixinhas, desses rótulos e da necessidade de uma sociedade pensada eurocêntrica, onde se tem a necessidade de estudo, de explicar, nomear, classificar e dar nomes e significados, nós continuamos nesse pensamento de padronizar as coisas e fazemos isso com as sexualidades, com os gêneros e acabamos não nos entendendo como uma sociedade de um todo.
A sociedade não consegue normalizar e criam-se um extraordinário para definições que o povo está achando que inventou algo com essas definições para coisas que existem desde que o mundo é mundo e, hoje, estamos em busca de mecanismos para se falar sobre isso, sendo que a gente não consegue olhar para algo que no passado já era assim desde sempre. Essa necessidade de explicar, nomear e dividir acaba desunindo mais que fortalecendo. Lutamos por rótulos e bandeiras, nos entendemos como comunidade LGBT, mas a gente não se entende enquanto comunidade ou pessoas.
Por outro lado, um raciocínio que eu faço sempre é que eu sempre me senti mais segura para ser indígena racializada dentro da minha aldeia, mas para ser LGBT, eu me sinto mais à vontade na cidade. Tanto que no processo da minha adolescência inteira, até hoje, eu nunca me relacionei com ninguém do meu povo, olha o bloqueio da pessoa!
Acredito que são poucos os casais do mesmo povo que conseguem, pois como disse anteriormente, nós não temos anonimato, as famílias sempre se cruzam, então é muito mais difícil. É tudo muito dentro, muito familiar.
TRADIÇÃO | O Assunto LGBT dentro das aldeias.
Quando se levanta assuntos LGBTs dentro do território e falam que vai contra a tradição, a gente questiona: “Contra a tradição de quem?
Pois da tradição indígena que não é [risos].
Na tradição indígena não existe céu e inferno, na tradição indígena não existe essa limitação do amor, dos nossos corpos e das nossas vontades e desejos. O que existe, principalmente para o Pankararu, e o que todos nos ensinam no campo da espiritualidade e das tradições, é que o que importa é seu coração, o que importa é o que você faz, ou o que fala e também suas ações.
Eu sou casada com a Viviane, uma mulher preta, de Salvador, advogada, incrível e de respeito dentro da espiritualidade de Pankararu para a chamarem de minha companheira. Por exemplo, se eu recebo um recado, “Pode vir você e sua companheira”, então se dentro da espiritualidade que é a mesma de todos eles, enxergam nossa relação com respeito e como o casal que somos, está tudo bem. Porém se eu chegar numa padaria e o padeiro falar, “Cadê sua amiguinha?”, sendo que ela não é minha colega, ela não é minha amiguinha, ela é a minha companheira, a minha esposa.
Nós nos casamos no cartório, fizemos festa de casamento, fomos vestidas de branco. E quando decidimos casar, brincamos de que foi muito mais politico e para existir dados, para mostrar no futuro que casamentos de pessoas do mesmo sexo acontecem perante a lei, a lei nos assegura isso, então vamos usar o que temos a nosso favor, e que é nosso direito. Então, nós casamos no cartório e as pessoas ainda enxergam nossa relação como se não fosse a sério, como se nós estivéssemos brincando de casinha.
A gente é um casal, com a mesma seriedade, amor, brincadeiras, consideração e respeito como qualquer outro casal. Então, para sermos um casal, nós somos mais respeitadas fora do território. É muito mais normal em uma cidade, ou um grande centro ter pessoas LGBTs, mas não é normal ter uma indígena passeando, então quando juntam você ser essas duas coisas vira algo extraordinário.
Ontem eu conversei muito com um amigo que é Pankararu e é gay, e ficamos horas conversando de muitas ideias políticas, sentimentos e de como é muito solitário ser um LGBT indígena, pois a gente nem existe dentro das pautas LGBTs, nós estamos entrando agora pois também estamos criando nossas próprias discussões.
Esse meu amigo faz parte de movimentos coletivos do estado, e ele me conta como é dentro da comunidade LGBT não racializada, onde existe toda perpetuação do estereótipo, pois não é porque você é LGBT que você deixou de ser racista, por exemplo, não é porque você é LGBT que você deixou de ser machista, ser LGBT não te isenta de produzir nenhum tipo de violência, inclusive nós, e a gente vê que os indígenas são discriminados.
Estamos começando agora, “Olha, eles existem”, e quando paramos para pensar na história do nosso passado como a do Tibira [o primeiro caso de um indígena documentado de morte por homofobia no Brasil], e que se relacionar com alguém do mesmo sexo é pecado, e quem tivesse esse mesmo comportamento teria o mesmo fim de Tibira. Isso mostra que sempre estivemos aqui, indígenas LGBTs ou não, nós sempre estivemos aqui. Mas isso não é o começo, dos tempos, e a gente conseguia viver, independente de letras ou padrões e nomenclaturas, rótulos e definições. Isso é mania de colonizar, dividir, catalogar.
Nós trabalhamos muito mais para o bem viver e acabamos perdendo muita energia em defender os nichos, do que defender uma coletividade mesmo real, plural, sincera e dinâmica e o próprio movimento LGBT é muito pautado na branquitude e em um pensamento muito eurocêntrico. E muitas vezes, dentro do próprio debate LGBT, eu não me vejo tão categorizada assim, eu vivo minha vida. A minha categoria é Bia Pankararu, e eu sou essa pessoa!
Quando você é um território indígena que perdeu esse raciocínio de que há lugar para todos, e dentro da sua comunidade você sofre homofobia, estupro, espancamento e varias outras violências de diferentes formas, e não existe ninguém para se falar sobre diversidade sexual de uma forma respeitosa e acolhedora, é complicado.
Na aldeia, nós passamos por vários enfrentamentos. Recentemente ocorreu um caso de que toda vez que tentávamos organizar um encontro de identidade de gênero, diversidade sexual ou sobre LGBTs, aqui no território de Pankararu, ocorria um boato polêmico de que nós iríamos fazer uma parada gay, onde iríamo por trio elétrico e iríamos descaracterizar a tradição, que o homem irá poder fazer o que é a função da mulher no ritual (vice-versa), e tudo isso vira um pavor e um pandemônio entre algumas pessoas que são influentes no território. Muitos desses boatos envolvem meu nome e de outros LGBTs, e quando tudo isso chega até nós, vem como uma surpresa, pois não estamos sabendo de nada.
Porém, criam-se esses como forma de retaliação, descaso e retaliação, e onde a justificativa é de que se houver uma parada gay dentro do território indígena, irá desmoralização do lugar.
Tudo isso referente a moral, enquanto a gente sabe que tem crianças de 10 anos de idade grávidas, homens de 30 a 40 anos que têm relações com menores de idade, que ocorre violência contra a mulher, abusivo excessivo de álcool, drogas, questões ambientais, sociais, questões de renda, a corrupção comendo solta, principalmente no interios, e o pessoal vem dizer que é desmoralizante ter uma discussão LGBT? Então, a colonização deu muito certo.
Se a gente passa tudo isso dentro do território indígena, agora imagina quando a gente vai para cidade, quando estamos no contexto urbano fora do território, onde você além de passar pelas homofobias, você ainda passa pelo racismo.
Já aconteceu um milhão de vezes em estar em Recife, por exemplo, independente do motivo que fosse, e eu estar em uma mesinha tomando uma cerveja e as pessoas chegarem até mim perguntando de onde eu sou, e eu responder que sou de Paulo Afonso, que é uma cidade mais ou menos grande aqui na Bahia. “Sou de Paulo Afonso”, tudo isso para evitar dizer que sou de Pankararu, que eu era indígena, evitar eu ser a noite inteira interrogada num tom de, “Nossa, que lindo, que legal!”, mas depois disso pode vir qualquer coisa, ou de ser entrevistada, ou de arrumar um trabalho, de alguém querer fazer uma pesquisa com minha história, eu virar um objeto de estudo ali na hora. É preciso normalizar, pois a gente existe, é normalizar que existem indígenas LGBTs, e que terá LGBTs em todas as áreas, em todos os campos, em diferentes funções. A sociedade acaba fazendo isso do extraordinário para tudo, “Um médico LGBT”, como se levassem para a ideia da promiscuidade, do imoral, na ideia de que não podemos constituir nossas famílias.
Essa coisa fantasiosa e esse interesse das pessoas enxergar o indígena LGBT como extraordinário, não é! É muito doloroso, é muito sofrido e muitas camadas que temos que romper para se manter vivo e se manter sã.
Como disse anteriormente, eu tentei suicídio e convivo com uma depressão e uma ansiedade, eu convivo com ela e reconheço que não temos na saúde pública nenhum tipo de tratamento ou acompanhamento padrão, imagina focada para população LGBT dos povos indígenas, não tem essa politica e não se tem sequer o entendimento real da necessidade de tratamento para um acompanhamento mental. Então nossa primeira batalha é dentro do território e depois nos contextos urbanos e fora dos territórios. São camadas extras que a gente ganha de discriminação, racismo, desse tom de extraordinário.
SER MULHER | ENFRENTAMENTO
Você ser mulher é estar no mesmo enfrentamento de todas as mulheres do mundo, eu acho, pois o mundo é extremamente machista. Então aqui dentro ou em qualquer outro lugar que eu vá colocar minha opinião, minha posição e conseguir falar sem ser interrompida por um homem, essa mesma dinâmica acontece em todos os lugares, seja em um território indígena ou não. Estamos em 2022 e seja comparado ao contexto urbano, nós vivemos as mesmas coisas, ainda mais enraizado por conta do patriarcado, e por ser mulher e estarmos no lugar do servir.
Enquanto mulher, e estar participando de uma reunião ver um cara esbravejar mentiras, e depois de eu levantar minha voz, a única coisa que saiu da reunião era que eu era agressiva, que não precisava daquilo, pois eu gritei na reunião. O cara socou a mesa, falando barbaridades e isso nem foi comentado.
Por ser mulher, eu enfrento os mesmo enfrentamentos que a mulher da sociedade brasileira vive, por ser indígena, as mesmas dores específicas [claro que dependendo do seu território/ contexto], mas as mesmas dores em viver em um momento em que nosso território está sendo usurpado pouco a pouco, todos os dias e a gente tem problemas internos sociais em todos os territórios. São projetos megalomaníacos, é a exploração maquiada, o não progresso. Que progresso é esse? Onde poucos ficam riquíssimos e são não-indígenas, é claro, e a migalha que sobra para o pobre é irrisória, quando se fala de projeto legais propostos pelo poder público.
Os maiores desafios de ser mulher, de toda e qualquer pessoa que seja indígena no Brasil e que seja LGBT, são os mesmos desafios de ser respeitada, de poder ocupar os espaços. É uma luta diária contra os estereótipos, contra a narrativa extraordinária. É uma luta atrás de luta e isso é muito cansativo, e o desafio é se manter sã.
ALEGRIAS
Uma das maiores alegrias é o fato de estar viva depois de dois anos de pandemia e o fato de estar vacinando a população, onde trabalhei mais de 7 anos na saúde indígena e peguei todos os períodos (baixo – médio –alto) da vacinação.
Vacinar meu povo contra a COVID-19 foi um momento muito forte de viver essa parte da da história trabalhando para meu povo e minha comunidade, foi algo forte.
São muitos espaços que eu já ocupei e sigo ocupando. Mas passar por um enfrentamento de ser uma mulher, ser indígena, ser LGBT, passar por todos os processos individuais e pessoais que a gente tem que passar para ser uma pessoa massa na vida e ainda ter todo um sistema racista, todo um sistema que gira para nos marginalizar e dificultar os nossos acessos a esses espaços, é muito desafio todos os dias.
No audiovisual mesmo, eu estou com um filme para lançar, e sei que ao entrar em alguns festivais, eu não tenho como ir por questões financeiras. O filme independente, a gente pede apoio a secretaria de cultura, de audiovisual e é uma burocracia enorme e depois a gente vê uma banda sertaneja levando uma cache de 500 mil, e essa mesma secretaria não tinha 5 mil para comprar uma passagem para você, para levar para outro país um filme que foi produzido na sua cidade, estado ou território.
Passar por isso tudo é ter que criar mecanismos para se fazer presente nesses espaços, como eu fiz para ir para Paris, no festival brasileiro de Paris, onde foi a primeira exibição do meu filme lá. E eu tive que bater na porta de vários órgãos públicos que poderiam me auxiliar, mas sempre há um questionamento. “Cinema, indígena, como assim?”
E aí, você ocupa lugares lá fora sem ter condições aqui dentro do Brasil. E quem vive nos grandes centros e nas grandes cidades acabam ocupando esses espaços muito mais fáceis. Então, as oportunidades até acontecem, mas a gente não tem condições de aceitar essas oportunidades. Que lugares são esses que nós estamos ocupando? Pois é tudo difícil e dolorido, tudo.
Agora na grande mídia, a performance de ser indígena é ter que dar uma entrevista caracterizada, enquanto para meu povo a gente só usa nossas coisas em tradições espirituais. Você acaba tendo que estar performando o imaginário coletivo do que é o ser indígena. E mesmo ocupando alguns espaços, ainda é tudo muito violento.
Em Paris o que eu mais ouvi foi, “Nossa que surpresa, eu achava que o filme se passava na Amazônia”.
Então, lá fora, a ideia do indígena brasileiro é a Amazônia, que o indígena brasileiro é da Amazônia. Até dentro do país, essa centralização da proteção de direitos e da vida dos indígenas, fica entranhado apenas na Amazônia, pois a mídia põe isso, enquanto o “Salve a Amazônia”. Esse é um assunto muito receoso, onde parece que a gente está falando mal, mas não estamos falando mal, eu estou falando é que a caatinga é um bioma em extinção em áreas de desertificação avançada. E a caatinga é um bioma 100% brasileiro, só existe aqui.
Uma das minhas maiores alegrias é minha família, por ter conseguido constituir ela. E das alegrias que eu tenho em vida, uma é acordar todo dia para estar na luta. A gente não entra na militância ou na luta, a gente está nela, a gente nasce nela. Não tem como ser diferente.