Lua Morkay é atriz, ativista, professora, pesquisadora. Uma artista plural que transita entre as áreas do teatro e música. É natural de Paripiranga, sertão da Bahia. Desenvolve pesquisa na área de mediação cultural e é Mestranda em Artes da Cena pela Escola Superior de Artes Célia Helena em parceria com a Escola Itaú Cultural. É Multiplicadora do Politize, importante movimento nacional de formação política para jovens e é liderança em formação na Falcons University da Rede Gerando Falcões e no HUB de Lideranças do Instituto Votorantim.
“Você é pobre, do interior, do fim do mundo e gente pobre tem que se preocupar em colocar comida na mesa e não perder tempo com bobagens”. Essa, com certeza, foi a razão que me fez contrariar as estatísticas e falas violentas que me rondam desde que decidi sair do interior da Bahia com 17 anos para estudar Artes Cênicas na capital, Salvador.
Faço parte de uma geração de artistas que conseguiu acessar as universidades públicas por meio das cotas sociais. Cheguei na Universidade Federal de Sergipe no início de 2010, onde pude realizar o desejo da criança – “pobre, do interior, do fim do mundo” – em estudar teatro. No entanto, foi vivenciando a cena artística em São Paulo, um tempo após finalizar a graduação, que o peso daquelas palavras – pobre e do interior – não poderiam jamais sentenciar a minha vida, por mais que parecesse impossível viver de arte em um país que renega suas origens desde 1500.
Toda essa trajetória que já era de luta e resistência se esfarelou no período mais conturbado da pandemia. Naqueles meses sombrios, não houve um posicionamento preciso das autoridades para o setor cultural. Eu e tantos outros artistas tivemos que interromper nossas atividades, trabalhos e planos e retornar para casa era a forma que encontramos para sobreviver a uma das maiores crises sanitárias vivenciadas nesses tempos.
Retornei às minhas origens, para o interior da Bahia, no semiárido, e pude vivenciar naquele contexto o movimento de sankofa – importante provérbio tradicional entre os povos de língua Akan, da África Ocidental, simbolizado por um pássaro mítico que voa para frente e tem a cabeça voltada para trás: “retornar ao passado para ressignificar o presente e construir o futuro”. Como um ensinamento, o sankofa transformou minha cosmovisão diante da vida, de minhas origens sertanejas e foi em meio a este cenário rodeada de filosofias ancestrais, que retornei para o conviver com mainha e com as mulheres da minha família.
Matriarcas de quase 95 anos que dedicaram suas vidas ao viver na roça, arando o feijão.
Em um momento de profunda tristeza, revolta e desesperança, transmutei minha dor em ação e, ao lado da professora e historiadora Ana Maria Ferreira e do professor e empreendedor Jackson Ferreira, criamos o movimento “Teatro Escola Sertão Vivo, um projeto inovador e ousado de enfrentamento à desnutrição cultural em nossa região.
Levamos o teatro, literatura, noções de empreendedorismo e formação socioemocional para mulheres na comunidade da Quixaba, zona rural da cidade. Assim como falou o filósofo e ativista indígena, Ailton Krenak, “O presente é ancestral” porque nos possibilita conectar com a nossa história, vivenciar nossas origens e, a partir daí, organizar, coletivamente, formas de luta.
Aqui encontrei mulheres líderes, empreendedoras, matrigestoras, cheias de histórias potentes. Vi um “Brasil” anônimo se revelar diante do “Brazil”. Ao longo dos dias e do reencontro com o rural, fui entendendo que a minha dor transmutada em ação abriria caminhos para que outras mulheres, e seus filhos, tivessem acesso ao que vivenciei nos palcos: pensamento criativo, autoestima, consciência crítica.
Gilberto Gil definiu Cultura como sendo “algo ordinário, pois cultura é feijão com arroz, é necessidade básica, tem que estar na cesta básica de todo mundo”. Foi daí que entendi que essa seria a minha lógica de resposta ao sistema que muitas vezes se camufla em frases como as que abriram esse texto.
Ao mesmo tempo, penso que estamos construindo coletivamente um movimento de pensar fazer teatro a partir de ações artístico-pedagógicas referendadas no amor como uma proposta de ação comunitária dentro de um cenário que reflete um país que renega sua própria origem rural e condiciona as mulheres em situações subalternas, inferiorizando-as, porque há uma agenda em vigor que é colonial e que privilegia o homem.
Voltar para casa me trouxe uma visão genuína, a certeza de que minha arte e minha pedagogia são armas letais contra a pobreza e a ausência de investimentos na cultura e educação. E eu sei que será daqui, das entranhas do interior da Bahia, que surgirão os maiores artistas, cientistas, pesquisadores e líderes porque nós, mulheres – e onde quer que vocês estejam – podemos lutar e nos inspirar como uma mulher sertaneja luta: apesar da seca, escolha a abundância de conhecimento, apesar da escassez de oportunidade, crie seu próprio palco.
Não espere convites, seja você a quem convida. E estamos convidando vocês a perceberem que o que separa o Brasil da capital e o Brasil do interior é: investimento e visão atrelados à oportunidade.