No mês da Consciência Negra, o Àwúre, iniciativa do Ministério Público do Trabalho (MPT), Organização Internacional do Trabalho (OIT) e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), buscou ceder ainda mais espaço para pessoas negras falares sobre questões importantes para essa grande e sofrida parcela da população brasileira, seja em vídeos nas redes sociais do projeto, ou por escrito no site do Àwúre. Uma dessas pessoas foi a escritora e coordenadora pedagógica Mari Vieira, que se apresenta com suas próprias palavras.
“Nasci onde não faltava luz e nem horizonte. Tudo era imenso, o céu era intensamente azul, os quintais eram matas e a inspiração um dado da natureza. Todos os caminhos eram quase sempre versos. A poesia morava perto do rio. Tudo era mágico, até a ausência de luz elétrica que só chegou quando eu tinha por volta de seis anos. Saudades do Vale do Jequitinhonha-MG. A São Paulo que me recebeu há mais de vinte anos realizou os sonhos que nasceram lá: me tornei professora, escritora e poeta. A força que tenho para dizer que sou uma realizadora de sonhos também nasceu nos longínquos cantos do Vale.”
Mari Vieira

Entrevista concedida ao Jornalista Pedro Lemos
Pedro- Por que muitas mulheres negras ainda não têm seu papel histórico devidamente reconhecido?
Mari– O racismo estrutural tem papel preponderante para esse fato. Ainda existe na sociedade brasileira uma enorme dificuldade em entender a mulher negra como pensadora e produtora de conhecimento. O Brasil é um país que resiste muito em aprender a ver o povo negro fora do lugar subalternizado. É fácil ver uma mulher negra como doméstica e mesmo empregadas domésticas como Laudelina de Campos Melo cuja importância política é inquestionável e não é adequadamente reconhecida por sua luta e brilhantismo. O Brasil é um país de ideologia escravocrata, insiste em manter uma espécie de sociedade de castas, em que há uma insistência enorme em ver e manter a mulher negra no lugar mais desvalorizado da sociedade, por mais que nós, mulheres negras, lutemos e resistamos historicamente contra tal imposição.
Pedro– Qual a consequência dessa exclusão?
Mari– Uma sociedade limitada de vários pontos de vista, mas especialmente do ponto de vista do seu potencial criador e inovador. Uma sociedade que não trabalha para expandir o potencial de todas e todos e todes corre o risco de tornar-se uma sociedade imbecilizada, um lugar de dispensa de mentes brilhantes e inteligentes e, por sua vez, corre o risco de tornar uma sociedade que se condena ao pior lugar da história. É claro que o Brasil ocupa um lugar melhor do que o pior lugar da história, mas isso porque as mulheres negras resistem bravamente. As mulheres negras resistem nas periferias, nos quartos dos fundos, nas universidades, nas empresas, nos terreiros de Candomblé e Umbanda e etc., criando cotidianamente estratégias de luta, sobrevivência que ainda hoje poucos reconhecem.
Pedro – Por que é importante que as escolas resgatem essas biografias de mulheres negras importantes para a história de nosso país e do povo negro?
Mari – A escola é (ou deveria ser) o lugar onde, por excelência, a inovação e o melhor do mundo deveria começar, no entanto, as escolas são microcosmos sociais. Os muros, as salas de aulas, os professores e professoras não são necessariamente uma representação de mudanças e fim dos estigmas sociais. Professores e professoras e profissionais da educação no geral são representantes do melhor e do pior do que há no mundo como um todo. É preciso ficar atento a esse “detalhe” para não se criar expectativas exageradas e irreais sobre o poder da escola. Dito isso, respondo que uma vez rompidas as barreiras das imposições do racismo, do machismo, das péssimas condições de trabalho e etc., a escola, disponibilizando biografias de mulheres negras criaria espaço para o fim de uma série de mazelas das quais as mulheres negras (e por consequência toda a sociedade) são vítimas.
Pedro – Como a escola pode se apropriar desse material?
Mari – Primeiramente formando educadores antirracista, antifascista e antimachistas. É importante a existência de leis, mas também é necessária a formação contínua e séria para professores e professoras. A formação de profissionais da educação como um todo (insisto no todo para incluir quem trabalha na escola e não é professor(a), como por exemplo, os agentes escolares que também desempenham papel importante na formação das crianças e adolescentes) deve ser absolutamente e irrestritamente comprometida com as mudanças necessárias. É urgente condições de trabalho e de atualização adequadas. Falando especialmente do corpo docente é importantíssimo uma formação comprometida com a aplicação desses saberes, que exista meios de cobrar uma prática antirracista, antifascista e antimachista em sala de aula, caso isso não aconteça há o risco de parte desse material virar peso morto nas bibliotecas. Simultaneamente a essas ações, disponibilizar biografias para professores, professoras e estudantes significa ações urgentes e muita esperança de uma sociedade mais justa e menos excludente. A parte toda as dificuldades encontradas, especialmente nas escolas públicas, as salas de aulas ainda resistem como espaços de luz e docentes comprometidos são o caminho mais curto para o mundo que sonhamos.
Mari Vieira publicou pela primeira vez em 2017 no Cadernos Negros V40 – Contos afro-brasileiros – Quilombhoje.
Participou de diversas antologias como:
Movimento Palavras Pretas, Ed. Feminas
Cadernos Negros V. 42 e V. 43 – Quilombhoje,
Escritoras de Cadernos Negros – Contos e poemas Afro-Brasileiros – (Coleção de mão em mão) Secretaria Municipal de Cultura,
Olhos de Azeviche V. 02 – contos e crônicas – Editora Malê
Revista Periferias n. 07 – conto traduzido para o inglês, francês e espanhol
Currículo em ação – material didático- 2ª Série do Ensino Médio volumes 1º e 4º bimestres – Secretaria de Educação do Estado de São Paulo
Mari Vieira também é cofundadora do coletivo de escritoras negras Flores de Baobá. Instagram @soumarivieira”.