Condenação por tráfico de pessoas é a maior do país, enquanto a sentença pelo crime de trabalho análogo à escravidão é a segunda maior.
Filho do fundador das Casas Bahia, o empresário Saul Klein foi condenado pela Justiça do Trabalho a pagar R$ 30 milhões de indenização por explorar sexualmente e submeter mulheres à condições análogas à escravidão. As condenações são, respectivamente, a maior e a segunda maior pelos crimes de tráfico de pessoas e trabalho análogo à escravidão. De acordo com o Ministério Público do Trabalho de São Paulo (MPT-SP), Klein aliciava jovens com idades entre 16 e 21 anos em situação de vulnerabilidade econômica e social, com a falsa promessa de trabalho. Após leva-las para seu sítio, em Boituva (SP), ele as explorava sexualmente, as submetendo à condição similar à escravidão.
De acordo com as investigações, Klein atraía as vítimas para sítio sob o pretexto de impulsioná-las na carreira de modelo, supostamente para participar de eventos como “presença vip” e tirar fotos para campanhas de biquíni ou panfletagem. Ao invés disso, o empresário obrigava as mulheres a terem relações sexuais com ele, utilizando-se de violência psicológica e forte vigilância armada.
Segundo nota do MPT, além de serem obrigadas a ficarem mais de 24 horas trancadas em um quarto com Klein, algumas das vítimas foram contaminadas por doenças sexualmente transmissíveis.
A ação na Justiça do Trabalho foi ajuizada em outubro do ano passado, com pedido do Ministério Público de R$ 80 milhões de indenização por danos morais coletivos. Para Tatiane Simonetti, umas das procuradoras responsáveis pelo caso Klein, “o papel do MPT é de buscar uma justiça restaurativa. É aplicar uma penalidade, uma sanção pecuniária ao réu pela violação das normas protetivas à dignidade da pessoa humana”. Para o também procurador do trabalho Gustavo Accioly, “esse valor (da indenização coletiva) deve ser revertido para conscientização e reparação de danos causados a vítimas de violência, visto que a dignidade da mulher, quando é violada, atinge todas as mulheres”.
Na sentença, o Judiciário reconheceu que foi comprovado, para fins trabalhistas, que o réu mantinha diversas mulheres em condição análoga à de escrava para fins sexuais, fixando o pagamento de R$ 30 milhões por danos morais coletivos. Para a procuradora Tatiane, “dar visibilidade a essa condenação é de extrema importância visto essa é uma resposta à sociedade de que crimes como esses não serão tolerados”.
A Justiça trabalhista reconheceu que “o esquema mantido pelo réu para satisfazer seus desejos pessoais feriu aspectos íntimos da dignidade da pessoa humana, causou transtornos irreparáveis nas vítimas e mudou definitivamente o curso da vida de cada uma delas”, razão pela qual a sua punição também visava prevenir que ele voltasse a usar de sua grande influência e poder econômico para cometer tais crimes. Assim, Klein também ficou proibido de praticar tráfico de pessoas e submetê-las a condições de escravidão, sendo fixada multa de R$ 100 mil caso a obrigação seja descumprida.
O Conselho Regional de Medicina (CRM) de São Paulo e do Ministério Público (MPSP) também foram notificados para investigar possíveis infrações éticas ou legais por parte dos médicos ginecologistas que atendiam às mulheres no sítio de Klein.
A decisão da Justiça do Trabalho é em primeira instância, o que indica que ainda cabe recurso por parte do empresário.
PROCESSO CRIMINAL
Na esfera criminal, Klein também é investigado pelo Ministério Público, que apura os crimes de estupro e favorecimento à prostituição. Em 2021, após concluir as investigações, a Polícia Civil pediu sua prisão preventiva, mas a Justiça negou. Inicialmente, o juiz determinou medidas cautelares, como a proibição de que Klein deixasse o país, mas isso foi posteriormente revogado. O inquérito tramita sob sigilo.
Para a procuradora Tatiana Simonetti, uma das responsáveis pelo caso junto ao MPT, “o reconhecimento de crime pela Justiça do Trabalho através de uma condenação pode impulsionar e ajudar que outro órgão do judiciário reconheça os fatos na mesma linha de investigação”, Tatiana destaca que o processo trabalhista é independente do processo penal, mas aponta que as provas são produzidas e compartilhadas de forma conjunta entre as instituições, Ministério Público Estadual, Ministério Público do Trabalho e Polícia Civil. “Cada órgão, de forma independente, vai apurar as provas e julgar os fatos, os enquadrando na legislação”, finaliza.
Para o procurador do trabalho Gustavo Accioly, que também é responsável pelo caso, a disponibilização dessas provas já produzidas pode evitar a revitimização das jovens que sofreram os abusos, visto que todos os depoimentos anteriores foram gravados e estão disponíveis para acesso do juiz responsável. “Chamar as mulheres para depor novamente causaria constrangimento porque elas teriam que vivenciar os sentimentos negativos associados à violência sofrida”, afirma Accioly.
A IMPORTÂNCIA DE DAR VISIBILIDADE A CASOS COMO ESSE NO BRASIL
A procuradora do trabalho Cristiane Sbalqueiro, que compõe a tríade de procuradores responsáveis pelo processo de Klein, explica que o Ministério Público do Trabalho age em prol de prevenir situações de escravidão, em que há a exploração do labor de alguém a fim de obter vantagem ou proveito, para ela é importante que a sociedade esteja ciente da gravidade de crimes como esse e que essa consciência faça com cada vez mais pessoas denunciem situações similares. “A sociedade brasileira é extremamente desigual, socialmente desigual. Isso traz várias lacunas também no discernimento e na necessidade das pessoas, necessidades prementes, objetivas, como a fome e como a automanutenção. Isso precisa ficar claro para que as pessoas denunciem, cada vez mais, casos como esse”, destaca.
Para o procurador do trabalho Gustavo Accioly, as desigualdades têm como pano de fundo o racismo e o machismo estruturais, que permeiam o processo histórico do Brasil e que objetificam as mulheres, as colocando à margem da educação e à margem de uma relação digna de trabalho. “Isso tudo deixa a mulher mais fragilizada, mais vulnerável a ser vítima de um crime como esse de Saul Klein. É por isso que nossa atuação é imediata, a fim de tentar resgatar a dignidade dessas mulheres”, finaliza.
Combater tais desigualdades é dever constitucional do Estado, por isso “é preciso desenvolver políticas públicas, que busquem a conscientização de toda a sociedade acerca das fragilidades desses grupos sociais, a fim de colocar a mulher brasileira numa situação, de fato, de igualdade” destaca a procuradora do trabalho Cristiane Sbalqueiro, frisando que a partir disso o combate às violências sistêmicas e sociais seria mais eficaz.
As desigualdades, ainda tão latentes, servem de alerta para o Brasil. Segundo a procuradora do trabalho Tatiane “o Estado brasileiro precisa agir para evitar que mulheres, mulheres negras, crianças e adolescentes, sejam vítimas de suas próprias necessidades, e terminem sendo cooptadas por crimes por conta de uma fragilidade estrutural”.
Juntos, os três procuradores do trabalho responsáveis pelo caso de Klein, reafirmam que o reconhecimento judicial nesta situação concreta permite que as pessoas identifiquem os fatos denunciados e comprovados como crime, os vendo como uma grave violação aos direitos humanos, à saúde e à dignidade sexual das pessoas: “Que a atuação firme do Estado, MPT e Judiciário encoraje novas denúncias” finalizam.