André Werlang Garcia¹
Denísia Martins Borba²
Alessandra Tereza Mansur Silva²
João Carlos Ferreira de Melo Júnior¹,²
Luana de Carvalho Silva Gusso²
¹ Programa de Pós-Graduação em Saúde e Meio Ambiente e ² Programa de Pós-Graduação em Patrimônio Cultural e Sociedade – Universidade da Região de Joinville
A biosfera é uma inestimável fonte de biodiversidade e de sistemas que se conectam por dinâmicas e processos em macro escala, a exemplo do que podemos observar nas grandes pandemias e no atual cenário das mudanças climáticas. Os padrões e as formas de vida presentes hoje na Natureza são reflexo de bilhões de anos de evolução, o que garantiu não só a diversidade de espécies, mas também a sua possibilidade da coexistência. Dentre as 10,9 milhões de espécies estimadas no Planeta (1), apenas uma, e a mais jovem, tem em si um grande poder de dominação e transformação – a espécie humana.
Ao longo da sua caminhada sobre a Terra, a humanidade parece ter se dividido em duas linhagens: uma alicerçada por princípios ecocêntricos, em que a sua existência se iguala aos dos demais seres vivos e juntos estabelecem uma relação de interdependência; e outra calcada por princípios antropocêntricos, em que a sua existência se sobrepõe, subjuga e super explora toda e qualquer forma de vida que de alguma maneira lhe gere riqueza.
Assim, a história da humanidade é marcada por inúmeros conflitos materializados na conquista por terras em toda parte. A propriedade de terras significa poder e empoderamento adquirido pela exploração dos recursos naturais que elas oferecem, sendo transformados em riqueza monetária ao seu detentor. Numa perspectiva geográfica, os elementos que compõe o espaço geográfico são contínuos, podendo-se dizer que tudo que nele ocorre lhe pertence (2) e passa a ser, ao olhar do detentor, um objeto.
Em um mundo etnocêntrico, moderno e potestativo, o seu valor central está pautado no reconhecimento de uma mentalidade proprietária em que “o meu é inseparável de mim”. Ou seja, é o reconhecimento da propriedade das coisas como uma ordem de pertencimento, “como manifestação externa – qualitativamente idêntica – da propriedade intrassubjetiva que todo “eu” tem de si mesmo e de seus talentos” (3).
As comunidades tradicionais têm habilidade com a agricultura familiar e agroecologia, técnicas que valorizam a diversidade de culturas e sementes locais, o que lhes permite manejar espécies e ambientes ao mesmo tempo em que promovem a conservação da biodiversidade. Essas práticas ajudam a preservar a biodiversidade, o que contribui com a resiliência dos sistemas agrícolas face às mudanças climáticas e outras pressões antropogênicas sobre o ambiente. Essas comunidades têm um papel vital na conservação dos recursos naturais e na segurança alimentar de toda a população (4).
Após 1988, houve gradativo desenvolvimento de ações de controle e proteção às áreas indígenas, o que resultou em uma redução de 80% do desmatamento na Amazônia entre os anos de 2004 e 2014 (5). No entanto, em 2022, o relatório da Comissão Pastoral da Terra (CPT), informou que em todo o território nacional havia 80,1 milhões de hectares disputados entre invasores e as comunidades locais (6). Destas comunidades, um número elevado delas, são indígenas. Entre elas o destaque está para os Yanomamis, sofrendo com alto índice de violência e assassinatos (6, 7).
O “Marco Temporal” oferece uma tese sensível e atual, em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF), que busca concluir um debate sobre o acesso dos povos em territórios em que estavam tradicionalmente ocupadas por eles na data da promulgação da Constituição de 1988 (8). O texto torna-se polêmico por confrontar o Artigo 231 da própria Constituição e, também, por não considerar os motivos de não habitação das terras na data prevista, como é o caso do povo Xokleng. Estima-se que se a tese do “Marco Temporal” for confirmada pelo STF, ela possa afetar cerca de 80 casos semelhantes e mais de 300 processos de demarcação de terras indígenas pendentes (9).
Contrário ao ideário implícito ao “Marco Temporal”, o meio ambiente não deve continuar sendo tratado como um simples objeto. Considerando que ele representa o todo, urge uma revisão de valores, sistema de ideais e paradigmas para reescrever antigas racionalidades que contribuem para a degradação ambiental (10). Entre as novas propostas de interação do homem com a terra, e assim, com o meio ambiente é a perspectiva “Biorregional”, que considera um território com atributos ecológicos (que constituem o meio) e culturais (que constituem a comunidade local) cujo sistema de relação prioriza a preservação da flora e da fauna (11). A perspectiva “Biorregional” evoca a importância dos vínculos entre humanos e mais-que-humanos com a sua comunidade (12).
O biorregionalismo foca nas culturas locais, nos povos tradicionais e no direito à diversidade cultural, tornando o seu resultado uma perspectiva promissora de desenvolvimento sustentável, um tema já valorizado pelo mercado internacional que volta seus interesses aos produtos que respeitam a biodiversidade, as antigas tradições e a socio-diversidade (13).
O tema meio ambiente não é isolado do tema saúde humana, considerando que os problemas ambientais já fazem parte do âmbito da Saúde Pública há alguns séculos, mas foi a partir da segunda metade do séc. XX que se tornou uma abordagem estruturada chamada de Saúde Ambiental (14). Segundo a Organização Mundial da Saúde, a Saúde Ambiental deve incluir a qualidade de vida em seu sentido mais amplo, sendo orientada por fatores físicos, químicos, biológicos, sociais e psicológicos. Essa relação de equilíbrio orienta a humanidade para desenvolver práticas que possam prevenir ou controlar os fatores de risco ambiental que, potencialmente, possam prejudicar a saúde de gerações atuais e futuras (15).
A expansão de fronteiras agrícolas que avançam sobre áreas de biomas de elevada complexidade, promovendo desmatamento e a substituição da floresta nativa por atividades agropecuárias, podem resultar na completa ruptura da dinâmica ecossistêmica em múltiplas escalas, colocando a população humana em contato com organismos potencialmente nocivos à saúde, facilitando a sua contaminação por diferentes vetores epidemiológicos (16).
Dados do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazonia (IPAM) (17) estimam que caso o “Marco Temporal” seja aprovado no Legislativo Federal, é possível haver um desmatamento nas proporções entre 23 milhões e 55 milhões de hectares que hoje são resguardadas pelos povos indígenas (17). Caso isso ocorra, a emissão de gás carbônico correspondente será de aproximadamente 7,6 e 18,7 bilhões de toneladas de CO2 na atmosfera, o que significa até 14 anos de emissões do Brasil, ou ainda, 90 e 200 anos de emissões dos processos industriais (17).
O relatório da Organização das Nações Unidas mostra que as áreas indígenas da América Latina e do Caribe apresentam as menores taxas de desmatamento, confirmando a excelência deles quanto aos cuidados e preservação da natureza (18). A chance de sobrevivência da humanidade está diretamente relacionada à preservação da biosfera, sendo os povos originários os mais hábeis nesta perspectiva (19).
Ressalta-se que a aprovação do “Marco Temporal” pode impactar negativamente os povos originários e demais comunidades tradicionais. Isso porque muitas dessas comunidades não possuem documentos formais que comprovem a sua posse ancestral sobre a terra. O “Marco Temporal” estabelece que as terras só podem ser demarcadas como terras indígenas ou quilombolas se as comunidades que as reivindicam estivessem ocupando esses territórios antes de 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. Isso significa que muitas comunidades afrodescendentes que foram expulsas de suas terras durante o processo de colonização e escravização no país, e que retornaram aos poucos, podem perder legalmente o direito sobre essas áreas.
Além disso, a aprovação do “Marco Temporal” pode reforçar ainda mais o racismo estrutural existente no país, considerando que este ignora a presença e a história das comunidades tradicionais de matriz africana, indígenas, quilombolas, entre outras que são historicamente marginalizadas e excluídas dos processos de tomada de decisão pelo Estado. Por isso, a luta contra a aprovação do “Marco Temporal” é fundamental para a defesa dos direitos dessas comunidades, bem como, para o fortalecimento da diversidade cultural e étnica do Brasil.
REFERENCIAS
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